r e s e n h i t e a g u d a

Raiva

A ficção argentina tem se afastado de seu paradigma mais conhecido, a literatura fantástica, o que bem comprova “Raiva”, primeiro romance de Sergio Bizzio (Villa Ramallo, 1956) a ser lançado no Brasil. A produção literária do cineasta e roteirista (sua história “XXY” dirigida pela mulher, Lucía Puenzo, obteve repercussão por aqui) tem sido prolífica, remetendo-a nesse aspecto e em outros à proverbial graforréia do compatriota César Aira (Coronel Pringles, 1949).

Os livros deste último, além da prolificidade, quase sempre são calçados no absurdo contemporâneo. Com Bizzio não é diferente, partindo em seus enredos de situações realistas bastante reconhecíveis para progressivamente descambar no delírio. Em “Realidad” (2007), por exemplo, um reality show é invadido por terroristas islâmicos. Apesar disso, e por exigência dos criminosos, o programa continua a ser exibido. Desse modo, em movimento inesperado, a realidade contamina com violência o absurdo midiático de exposição pública da intimidade.

Em “Raiva” algo semelhante ocorre: primeiro, o pedreiro José María e a doméstica Rosa se apaixonam. Agressivo, José María espanca quem dela se aproximar, como o filho do síndico de um prédio vizinho à mansão onde Rosa trabalha. Ele perde o emprego após ser denunciado, mas assassina o capataz. Alheia a isso, Rosa continua a recebê-lo no emprego, aproveitando viagem dos patrões. Certa noite, porém, eles voltam desavisadamente. Obrigado a se esconder no sótão, José Marías permanece na mansão sem que ninguém o saiba.

Aí tem início um sedutor jogo de voyeurismo que envolve o leitor, levando-o a avançar páginas em busca do desenlace. José María é subitamente aprisionado à vida secreta dos personagens da casa ao mesmo tempo que transforma sua relação anterior com Rosa em algo que não pode contar com sua intervenção. Ele usa do telefone para falar com a namorada, mas não tem meios, ou quiçá o direito, de alterar o destino dela, descobrindo assim ambiguidades de sua face íntima, assim como a de todos os outros moradores da casa.

De forte base irrealista, a ficção argentina moderna originada em Macedonio Fernández (1874-1952) e perpetrada por Jorge Luís Borges, Julio Cortázar e muitos outros, tornou-se ilusoriamente representação metonímica de toda a literatura argentina, excluindo a vertente de ordem documental surgida no “Facundo”, de Domigos Sarmiento (1811-1888), e continuada em Roberto Arlt (1900-1942). Sergio Bizzio, assim como César Aira, representa o caminho do meio surgido nos últimos anos.

Raiva, Sérgio Bizzio, Record, 2011

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