Uncategorized

A questão da verossimilhança

(Texto publicado originalmente em 29 de outubro de 2013 — há dez anos, portanto — no blogue da Companhia das Letras).

Temos no Brasil um clichê contemporâneo que afirma que a arte produzida pelos argentinos é melhor que a nossa. Os filmes deles são sempre mais competentes, e feitos com menos dinheiro. A literatura, desde sempre, foi melhor. Eles têm Borges, Cortázar e nenhum romance brasileiro dos últimos cinquenta anos chega aos calcanhares de Respiração Artificial, de Ricardo Piglia. Mas existe um equívoco nessa comparação. Para que seja coerente, é necessário que a busca de equivalência se utilize do que eles têm de melhor, porém nós também. Os argentinos sabem fazer filmes e livros. E nós sabemos fazer armas de fogo.

Foi muito difundida recentemente a imagem acima, na qual um garoto mostra a procedência da bomba de gás lacrimogêneo lançada pela polícia turca contra um acampamento sírio. Talvez menos conhecido seja o fato de que atualmente o cidadão norte-americano — pródigo em exercer seu direito de legítima defesa — é o maior comprador de armamento produzido no Brasil. Nos últimos 10 anos, a indústria brasileira do armamento vendeu mais de 5 milhões de armas para o mercado dos EUA. De acordo com esta matéria da Folha, é número suficiente “para armar a população inteira de países como Noruega e Croácia”. Nossos vizinhos também são bons fregueses. Enquanto produziam filmes e livros melhores que os nossos, no mesmo período os argentinos compraram 215 mil de nossas excelentes armas.

Corta para a noite de ontem.

Ontem à noite, depois de voltar de uma viagem ao exterior que durou um mês e que incluiu minha participação como integrante da delegação brasileira na Feira de Frankfurt na qual o Brasil foi homenageado, bem, ontem à noite eu recebi um telefonema a cobrar. Como sempre nessas ocasiões, atendi imaginando que fosse minha filha de 14 anos, pois só ela liga aqui em casa a cobrar. Esse fato contribuiu para a questão da verossimilhança, e era realmente ela ao telefone, aos prantos, dizendo que havia sido sequestrada, espancada e que estava nas mãos dos sequestradores. Eu pedi que se acalmasse e daí surgiu ao fone a voz de um homem com o registro linguístico típico da criminalidade, exigindo dinheiro para libertá-la. Eu já ouvira falar desse tipo de golpe, mesmo assim o impacto foi grande. Fiquei a mercê do sujeito, por um motivo simples: minha filha vive em outra cidade, a mil quilômetros de mim, e antes de mandar o bandido àquele lugar eu precisava confirmar se ela estava bem. Isso levou uma hora e meia, uma hora e meia de puro terror.

Corta para vinte dias atrás.

Vinte dias atrás eu atravessava à noite um bosque de Berlim. Era um lugar absolutamente ermo que eu precisava atravessar para chegar ao hotel onde estava, único lugar que obtive para me hospedar durante o feriado da unificação alemã, pois a cidade estava cheia. Ao me enfiar naquela escuridão fui tomado pelo pavor. O que eu fazia ali naquele lugar? Podia ser assaltado, sequestrado e morto. Mas nada disso aconteceu, e durante minha estada na cidade eu atravessei aquele bosque e outros lugares ainda mais escuros, sempre com medo. Aparentemente, investir em segurança permite ao Estado alemão que economize em iluminação pública. Berlim é uma cidade bastante escura.

Corta para dez dias atrás.

Outra notícia que repercutiu ultimamente foi o discurso de abertura feito por Luiz Rufatto em Frankfurt. Trechos de sua fala afirmavam que “nascemos sob a égide do genocídio” e que “a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.” Em minha participação no pavilhão brasileiro, ao lado de Sérgio Sant’Anna, recordei minha sensação de temor ao atravessar o bosque de Berlim, concluindo que nós, brasileiros, carregamos uma variação ainda mais perversa de trauma de guerra do que aquele sofrido por militares. Nós somos civis. Supostamente — é o que nos fazem crer —, não estamos em guerra. Podemos não praticar a violência, porém a violência não nos abandona. É traço indelével de nosso caráter. É o que temos de melhor? Pois até a exportamos, e o governo brasileiro fornece generosos subsídios fiscais para isso, assim como recebe apoio financeiro da indústria armamentista para suas campanhas políticas.

Corta para ontem à noite.

Levei uma hora e meia para localizar minha filha e descobrir que ela estava bem, na casa de sua mãe. Durante esse tempo, muita bobagem passou pela minha cabeça. Lembrei, por exemplo, que era eu o ficcionista ali, além disso um paranoico. Devia ser minha obrigação prever quais os passos seguintes daquela pantomima cruel. Mas a verossimilhança dos dados sobre minha filha que me eram fornecidos me derrubou. Acostumado ao pânico, ao ouvir aquela voz de alguém que fingia ser minha filha implorando por socorro, meu cérebro imediatamente codificou a voz — que devia ser a de um prisioneiro qualquer com talento interpretativo à altura de grandes atrizes argentinas — na voz de minha filha. Simplesmente porque era perfeitamente verossímil que aquilo estivesse acontecendo. Por sorte, minha mulher — que foi mantida o tempo todo no outro telefone — conseguiu se comunicar com um amigo, que localizou minha filha. Estava em casa. Soube disso a tempo de não cumprir as exigências dos bandidos. Tudo acabou bem?

Corta para a questão da verossimilhança.

Rufatto foi simultaneamente aplaudido e execrado, em sua tentativa de elucidar a plateia de Frankfurt acerca das contradições que nos conformam. Que nos deformam. Evidentemente, foi execrado por gente que não suporta se ver no espelho, e que não admite a má procedência do que oferecemos ou as reais patologias psíquicas e espirituais que sofremos enquanto cidadãos violentos, criados sob violência em uma nação violenta. Isso é o que somos, nossa matéria-prima. O que fazemos de melhor.

Corta para o futuro, circa 2050.

Andei lendo 10 Billion, um panfleto apocalíptico de Stephen Emmett, cientista de Cambridge que estuda os efeitos da hiperpopulação e do desgaste natural provocado pela agricultura e pela indústria no planeta e como isso refletirá daqui a algumas décadas, quando atingirmos a cifra de 10 bilhões de habitantes. É assustador, quase tão atemorizante quanto pode ser a um traumatizado pela violência atravessar bosques tranquilos de países civilizados na escuridão. Em diversas passagens do livro, minha mente paranoica deduziu que Emmett sugere que o Brasil — “o celeiro do mundo?” — pode perfeitamente ser palco de uma guerra mundial por comida. Pois isso, comida, vai ser artigo raro em 2050.

Corta para o momento de agora.

Lá pelas tantas, Emmett resolve perguntar ao seu assistente mais brilhante qual seria sua providência a fim de preparar seu filho para o futuro. A resposta do jovem cientista o surpreendeu: “Ensiná-lo a usar uma arma.”

Nossa providência, porém, é ligeiramente mais complicada. Precisamos ensinar nossos filhos a ler, e a ler livros que reproduzam nossa verdadeira essência de povo regido pela violência. Não vejo aspiração maior para nossa literatura atual do que a de refletir nosso verdadeiro caráter. Enquanto isso, precisamos ensinar nossos filhos a usar uma arma.

*

PS. Peço aos leitores que relevem o possível elogio da legítima defesa deste texto. Sou contra o uso de armas e abomino a violência. A coluna, porém, está sujeita aos humores de seu autor, e hoje é, pelos motivos expostos, daqueles dias em que me permito um hipotético “e se”?

Padrão

Deixe um comentário