a f i c ç ã o v i d a

Avenida do Fauno

Imagine que o fauno esculpido por Brecheret, adormecido por décadas entre as ramagens do Parque Trianon, desperte nesta noite de aniversário da cidade. Depois de se espreguiçar, ele salta as grades e sai a passeio pela Paulista. O que irá ver?

Nada de arbustos para se resfolegar, isto é certo — a Mata Atlântica que ora existe é apenas a que ele recém deixou para trás, mínima e quase nenhuma — diante do Masp, confunde-se mesmo com um museu da natureza.

Mas há agora o que antes não havia, espelhos aonde se refletir. O fauno se verá multiplicado aos milhares nas vitrines esfumaçadas das portas cerradas de bancos e prédios enormes cujos nomes são siglas. Ele haverá de estranhar se ver somente a si no reflexo dos vidros, pois nunca existe ninguém no avesso interno dos edifícios desta avenida. Nem um só vulto que lhe acene. Ninfas nenhumas.

Fauno prestes a virar minotauro, nosso amigo agora se depara com monstros inéditos na mitologia, mas que abundam no mundão humano: seres diminutos de cabeças descomunais caminham em sua direção, as mãos abertas em cujas palmas viradas aos céus também nada se encontra, nem migalha nem níquel. Nem mesmo chuva escorre ali.

Então surgem outras bestas mitológicas: duelando com os carros, Fofão sopra suas bochechas cheias de vento e silicone vencido. Com efeitos especiais, sua tristeza convence os passantes, que lhe disparam vinténs com fúria. Agora silvam ao redor do fauno outros faunos com rodas, sobre skates e outros bichos desconhecidos que deslizam. Nosso amigo se anima a afinar os cascos nas largas esplanadas da avenida. Ele galopa. O dióxido de carbono levanta seus cabelos.

E daí, para os lados da Augusta, ele deixa de lamentar o sumiço dos casarões e seus jardins cheios de vaga-lumes. Hordas de sátiros e ninfas de mãos dadas vêm em sua direção. Estão felizes. Embora cercados por muros altíssimos iluminados por cifrões, eles gozam de estranha liberdade. Isto parece a Grécia antiga, o fauno pensa. Acaba de ver as luzes da Paulista. Ele nunca mais se resignará ao silêncio do Trianon.

[ Escrito faz muito tempo, em algum aniversário passado de São Paulo, que hoje faz 470 anos, em algum momento mais otimista. Nesse ínterim entre o texto e hoje, a cidade mudou muito, abandonada que foi pelos últimos três prefeitos. Nunca foi tão cinzenta – e olha que sou daqueles que vêem beleza no cinzento –, triste e perigosa. Eu nunca quis sair de SP, coisa que sempre diagnostiquei como síndrome típica de paulistano da gema – o ímpeto de cair fora e viver no mato ou na praia –, mas ando sentindo isso. Terei me tornado um paulistano típico, depois de 29 anos na cidade? Não sei. Só sei que esse sentimento deve ser substituído por seu contrário, o desejo de ocupar praças e ruas, de ficar, de cuidar, de preservar e amar o lugar onde se vive. O desejo de refrear o dinamismo dessa cidade, que às vezes se confunde com pulsão de morte e destruição – de si mesma. Feliz aniversário, SP. ]

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