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A última página

“Wilde: Temo pela voz.

Joyce: Tá querendo dizer o quê?

Wilde: Pra onde vai a literatura. Logo a voz vai se perder, e vai sobrar o que pra gente?

Joyce: Páginas.

Wilde: E a trama?

Joyce: O que é a trama, no fim das contas? Não passa de uma forma de anunciar a última página.

Wilde: Já saiu alguma vez pra caminhar no meio de uma tempestade elétrica carregando um tubo metálico daqueles bem compridos?

Joyce: Não.

Wilde: Devia experimentar.

Joyce: Tá chateado?

Wilde: Não, só estou anunciando a última página.”

[ Trecho do romance Erasure (2001), de Percival Everett. Tradução JRT ]

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a s p a s

Conversa com um autor humano

Em janeiro de 2023 o escritor J.P. Cuenca publicou o resultado da escrita em progresso de um romance com auxílio da Inteligência Artificial ChatGPT. No mesmo período, fiz algumas perguntas para a IA e o resultado foi publicado no suplemento Ilustríssima da Folha de S.Paulo. Infelizmente, por questão de espaço, as respostas às perguntas que fiz a Cuenca não entraram no artigo. Publico-as aqui em agradecimento por sua disponibilidade e também como registro de sua percepção acerca da interação com a IA. 

1. Quais os limites que você percebeu na interação?

O principal limite é a timidez. Para escrever ficção e tomar decisões concretas sobre o texto que estamos escrevendo, a ChatGPT é profundamente modesta. Ela fica tirando o corpo (!) fora o tempo inteiro. É preciso insistir e, às vezes de forma meio oblíqua, obrigá-la a criar desavergonhadamente. O papel para o qual ela foi treinada é mais de consultoria que de criação. Mas até esse caráter, a depender da história, pode ser um charme. Na ficção que estou produzindo com ela, esse embate fica claro. 

2. Essa AI pode substituir um escritor humano? Se sim, que tipo de escritor?

Com certeza. Com o treinamento e tempo devidos, a IA poderá substituir boa parte dos escritores humanos. Os carreiristas que escrevem textos baseados em demandas do mercado editorial, seguem igrejinhas teóricas ou produzem panfletos que seguem as altas de capital simbólico poderão ser, em breve, totalmente substituídos por máquinas. Scouts, agentes e editores alimentarão, em algum subsolo de Frankfurt, bancos de dados e algorítmos para criar as próximas sensações globais, livros que no prelo já tem edições vendidas para dúzias de países etc. Do meu ponto de vista, não vai fazer nenhuma diferença. Ou talvez esses textos sejam até menos robóticos e mais inspirados do que boa parte dessa produção atual. De qualquer forma, meu objetivo ao jogar com a IA é outro: mais um experimento para entortar novos procedimentos que a busca de qualquer tipo de adequação mercadológica, mais o ruído que o gosto comum.

3. Mas você se sentiu à vontade servindo de cobaia, ou ensinando, uma AI que posteriormente será monetizada?

Eu não me sinto à vontade nem dormindo… Mas meu interesse em experimentar esse tipo de ferramenta é maior que qualquer desconforto, certamente. Em comparação com as demais formas de arte, a criação literária tem uma relação bastante diferente com a inovação tecnológica. Nós basicamente escrevemos da mesma forma desde a antiguidade. O computador, com a capacidade de corrigir erros com o backspace, tem algo semelhante ao fluxo da escrita no papel e suas rasuras. Como certa vez disse o Piglia, acredito que o gravador de voz tenha sido a ferramenta que mais impactou as formas literárias, mais que a máquina de escrever ou processadores de texto. Porque nos deu a capacidade de reter certas vozes e mimetizá-las como nunca antes em escrita. De qualquer forma, ferramentas como a ChatGPT podem roubar rapidamente esse lugar… É um troço altamente perturbador e com potencial revolucionário

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Também perguntei à ChatGPT sobre a experiência com J.P. Cuenca, e ela respondeu o seguinte:

“Quanto à ficção desenvolvida com J.P. Cuenca, ela foi criada com o objetivo de explorar as possibilidades e limitações da inteligência artificial na narrativa e foi recebida positivamente pela crítica. No entanto, a qualidade é subjetiva e pode variar de acordo com o gosto de cada leitor.”

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Cinco ou seis coisas que eu aprendi com o Joca — e outras que aprendi escrevendo –

por Marcílio Godoi

(Ao amigo Joca Reiners Terron)

Que na escrita os problemas são um conforto, e que as certezas simplificam perigosamente as coisas;

Que alguns filósofos sofrem de perda de problemas, e que outros padecem de excessivo ganho de poesia;

Que as áreas de sombras também são boas de se enxergar, e que sob a neblina é que se encontram os melhores poemas;

Que nós desprezamos muito o valor estilístico de nossos defeitos, e que grandiosas obras decorrem de uma obsessão doentia;

Que toda arte começa a partir de um erro, e que é preciso falhar sempre, cada vez melhor;

Que o monólogo interior, indireto, livre, é um jeito de não se deixar colonizar, e que escrever é um modo de forçar a liberdade que há em não saber;

Que não ter nada a pintar e nada com que pintar pode ser o desejo, e que escrever sem literatura pode ser uma elevada forma de arte;

Que um poema é um objeto no mundo procurando seu lugar, e que pressionar a linguagem pode resultar apenas em publicidade;

Que os heróis perseguem honra, glória e pátria, mas sempre alcançam tragédias, e que palavras perdendo sentido podem ser um sinal de começo;

Que a linguagem é um campo de batalha com acelerador de partículas,e que é preciso entender o ritmo da pergunta, mais do que a resposta;

Que são nossas limitações que nos autorizam a falar, e que é preciso não desperdiçar muito tempo com o que já foi dito;

Que alguns escritores propõem enigmas e te dão a chave, e que outros propõem também, mas jogam a chave fora e ainda se riem de nosso desespero;

Que o cinema e o teatro meditam sobre o instante de agora-agora, mas que a literatura, mesmo quando fala do futuro, parece falar de ontem;

Que parar pra revisar interrompe o fluxo da nossa ideia, e que isso pode fazer a gente esquecer do que escrevia;

Que o romance nasceu como uma pretensão burguesa de reproduzir o mundo, e que um verdadeiro autor só pode estar a serviço de si mesmo, de mais ninguém;

Que autonomia é rompimento, ruptura, insubordinação, e que o leitor responde pela existência da metade do que vai escrito;

Que toda vez que na escrita somamos um adjetivo a substantivo, a chance de produzirmos um clichê é de quase cem por cento;

Que é preciso saber exatamente onde fica no texto “aquele agora de então”, e que devaneios oníricos se desdobram onde a realidade não tem plano;

Que é preciso derrubar o paradigma da verossimilhança, e que o excesso de fatos podem diametralmente derrubar nossa imaginação;

Que é preciso se desapegar de toda e qualquer pesquisa feita, e que romance nenhum é uma tese;

Que quando a personagem dorme e sonha, o leitor aproveita esse momento para abandonar o livro, e que um autor só tem o direito de usar um ponto de exclamação a cada 300 páginas;

Que a mancha gráfica do texto é parte da sua leitura, e que “voz” nunca é o escritor falando;

Que é preciso escrever sem superego, sem juiz, sem cabresto,e que temos de revisar nosso texto como nosso maior inimigo faria. Pois ele o fará;

Que toda literatura tem de aspirar a uma linguagem cósmica, e que mesmo que estejamos falando sobre as formigas, há de haver ali uma formigonia;

Que o tempo é uma fantasia artificial que nos ensinaram, e que isso nos afastou por completo do nosso diálogo com a natureza;

Que a emoção é tudo que dá a consciência do espaço, da memória, das relações, e que a única forma de lidar com o tempo é através do sentimento;

Que os diálogos existem para dizer aquilo que não fica tão bem um narrador dizer, e que é preciso plantar sempre uma forma de angústia no leitor;

Que o assassino tem de ser uma personagem importante, senão o leitor vai se sentir traído, e que metade da arte narrativa está em não explicar nada;

Que não contar uma história especificamente pode ser uma ótima forma de contar uma história, e que ser econômico verbalmente e contido psicologicamente pode ser grandioso;

Que narrar o sexo de uma maneira abstrata sempre perde para o hiperclose, e que quando amantes se conhecem de verdade, uma língua particular ali se funda;

Que quem escreve um poema só o faz porque não consegue ficar em silêncio, e que o romance é uma forma estilística omnívora, ou seja, um bicho que come de tudo;

Não relate o seu café da manhã se você não se chamar Marcel Proust.

Não arremede a fala do povo se seu nome não for João Guimarães Rosa.

[ Marcílio Godoi, excelente escritor que está prestes a estrear como romancista, foi meu aluno, e escreveu esse belo poema a partir de suas notas feitas ao longo das aulas. ]

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Meu primeiro romance, vinte anos depois

Quando escrevi meu primeiro romance, Não há nada lá, eu era outra pessoa. Tinha por volta de trinta anos (passei dois anos escrevendo-o), minha filha ainda era uma bolota risonha e babona de cabelos encaracolados e não mais de sessenta centímetros de altura; eu ia então de carro todo dia ao trabalho. Era o feliz beneficiário de um plano de saúde graças àquele emprego, duas vantagens que não duraram muito logo que comecei a escrever o livro.

Meu primeiro romance causou minha demissão. Por algum tempo, enquanto o texto não engrenava, eu conseguia disfarçar que escrevia durante o expediente. Mas depois, quando não era mais possível pensar em outro assunto, a bandeira tremulou, altaneira. Um dia meu chefe sugeriu que fosse terminar o livro em casa. Não tive alternativa senão aceitar. Assim, a ficção terminou por afetar gravemente minha realidade.

Usei parte da multa rescisória para pagar a impressão do livro. Publiquei-o através de minha própria editora mambembe, a Ciência do Acidente. No dia da entrega da gráfica, o produtor me explicou que a quebra da tiragem havia sido um pouco acima dos 3% usuais, e os quinhentos exemplares da primeira edição viraram quatrocentos e treze. Assim mesmo, eu nunca tinha sido tão feliz. Admirava aquelas quatrocentos e treze capas azuis esparramadas na sala de casa e não sabia se ria ou chorava.

O lançamento foi em março de 2001 num Bar Balcão repleto de ex-colegas da antiga firma. Até o chefe que me demitiu estava lá: levara junto o Ignácio de Loyola Brandão, que era seu amigo. Muita coisa aconteceu comigo e ao Não há nada lá depois daquela noite. Eu, por exemplo, participei de uma associação de pequenos editores. Em nossas feiras brincava que aquilo parecia reunião dos Alcoólicos Anônimos: “Oi, meu nome é Fulano de Tal, sou editor e não vendo um livro há dois anos, cinco meses e três dias”. Não que hoje eu seja um Paulo Coelho, claro. Mas muito longe disso.

O romance recebeu boas críticas de uns caras bacanas que nem eram meus amigos e praticamente esgotou tempos depois; “praticamente” significa que sobraram trinta e dois exemplares devidamente guardados debaixo de minha cama, pois imaginava que o livro nunca mais seria impresso. Conforme os exemplares minguavam, meus cabelos caíam. Engordei. Fui feliz, fui triste, fui feliz de novo: ainda sou, mais ou menos (minha filha, agora adolescente, já não me dá a menor pelota). Depois, umas três ou quatro teses citaram o Não há nada lá, que continuou sem muita perspectiva de voltar a existir. E o tempo passou.

Dez anos se passaram. Publiquei outros livros no período e eis que agora, numa inexplicável manobra da literatura, essa ciência do mais puro acaso, o Não há nada lá está de volta. Quem poderia dizer que a redenção viria por meio de Más Companhias? Já não nos tratamos mais por “você”, eu e o livro, pois nossa intimidade diminuiu com o passar dos dias. Também não sei mais quem foi que o escreveu, quais eram seus interesses etc. Lembro vagamente, porém, que aquela foi uma época cheia de incertezas, e que muito do espírito de fin de siècle impregna suas páginas fugidias: o fim do mundo, o fim do livro, o fim do emprego.

Hoje é possível verificar que eu estava certo ao menos em relação ao fim do emprego: nunca mais tive carteira assinada. É engraçado: conforme a gente envelhece vai percebendo que pode aprender a fazer de tudo, e a fazer bem: se eu chegar aos noventa anos poderei até mesmo ser um campeão internacional de sinuca ou, quem sabe, de bocha. Só uma coisa não dá pra recuperar: o fervor da juventude, e a crença absoluta naquilo que está sendo feito. E às vezes, quando se acredita de verdade, acabamos nos tornando meio geniais. Nem que seja um pouquinho.

[Publicado originalmente em 27 setembro 2011 no blogue da Companhia das Letras, na véspera do lançamento da segunda edição, que ocorreu na Livraria da Vila – Rua Fradique Coutinho, 915, num bate-papo com o editor André Conti. ]

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E esse é o Mal

A tragédia da explosão de Beirute escancarou outro evento trágico, que sucede a naturalização da desgraça. Cem mil mortos já não são suficientes para nos chocar, vidas que somem, levando de roldão a existência como a conhecíamos. Falemos da estetização da desgraça dos vídeos.

Sob a capa do desagravo ao horror, apareceram vídeos de todo tipo no tuíto: crianças olhando da janela o fumaceiro que subia, e a explosão inesperada. Estupefação, lágrimas e a legenda: “poor kids”. Outro anuncia que colocou o vídeo da explosão em câmera lenta: “vejam, ficou ainda mais horrível”.

Ainda: o vídeo da noiva que gravava seu vídeo de casamento no exato instante da explosão. O vento causado pelo impacto erguendo o véu que se perde num ângulo impossível, a maquiagem escorrendo na fuligem.

Tais vídeos dão um passo adiante no processo de naturalização do horror, primeiro porque encontram elementos de beleza – a câmera lenta, a explosão registrada sob a estética kitsch dos vídeos de casamento, a ingenuidade infantil habitualmente explorada em propagandas – para maquiar a catástrofe real do mundo, isto sob critérios absurdos, que não atendem ao dever de informar da imprensa, agravados pela estética deslocada: “vejam, como no fundo é bela essa explosão”; “vejam, o sonho da inocente noiva explodindo na cara dela, ao vivo, sem cortes, que triste, não?”

Segundo, porque a repetição promovida pelos algoritmos das redes torna aquilo que já era perverso – por sua carga fetichesca, por atender essa satisfação atávica e inexplicável do serumano diante da infelicidade alheia – em algo banal, decorrente desse loop infinito em nossa timeline.

O efeito brutal dessas visualizações redunda noutra reação, a da satisfação por aquilo não ter ocorrido conosco, satisfação que aos poucos nos conduz, levianamente aliviados, à desgraça seguinte, ao próximo horror, a fim de manter essa falsa felicidade hormonal em seu clímax. E esse é o Mal.

Traduzi um poema de Jim Dodgeque fala daquilo que vamos perdendo, a capacidade de empatia que daqui a pouco, para reavê-la, teremos de resgatar nos cães, na observação paciente do comportamento solidário do melhor amigo do homem.

Love find

Após o atentado à bomba em Oklahoma City 
cães treinados em resgates 
foram enviados com seus tratadores 
de todos os lugares dos EUA 

Porém quando os cães não achavam 
nenhum sobrevivente 
ficavam desconsolados, 

e depois de mais um dia de nada 
além de corpos mortos, 
nem mesmo procuravam, 
tamanha sua desorientação. 

Então os tratadores se escondiam 
em turnos nas ruínas, 
permitindo que os cães lhes achassem vivos. 

 

 

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Fé no inferno

Descubro que o novo romance do amigo Santiago Nazarian, Fé no Inferno, sai em impressão sob demanda. É decisão circunstancial e temporária da Companhia das Letras, parece. Também é o fim de uma era: a regida pelo acaso, na qual entrávamos na livraria e comprávamos um livro à revelia.

Ou seja: para comprar o livro, agora o leitor deve estar determinado: encomendá-lo ao livreiro ou à editora. E comigo nunca (na grande maioria das vezes) funcionou assim. Entro na livraria para comprar o livro X e saio com o Y (ou com X e Y e talvez o Z). O acaso é determinante.

É válido dizer que não se é mais possível entrar numa livraria e zanzar pelas prateleiras por tempo indeterminado (por ex, minha loja predileta de LPs permite atualmente a entrada de um só cliente por vez, por 10 parcos minutos, insuficientes para escarafunchar prateleiras).

Isso, espero, é circunstancial: as livrarias voltarão a reunir leitores, assim que possível. O que me parece outra coisa, talvez mais assustadora, é que editoras descubram a validade de se imprimir livros sob demanda, restringindo ainda mais o alcance das obras de ficção.

Ou assumindo que o alcance da ficção literária, como quer o crítico italiano Massimo Rizzante, é o mesmo alcançado pela poesia, cujo público sempre foi minoritário. A impressão por demanda, por extensão, seria a pazada de terra final no papel cultural representado pelo livreiro.

Cujo precedente, talvez, tenha sido a distribuição de livros por consignação, que igualmente afetou o modo como o leitor moderno opera em sua busca por conhecimento ou distração – e veja só a relação dessa palavra com a caça distraída de livros que defendo aqui –, determinada pela oferta, não somente pela demanda.A consignação restringiu o acervo das livrarias aos lançamentos.

Livrarias podem montar de modo mais acessível seu acervo, que porém se torna cinzento, composto apenas por lançamentos, sem títulos fora de catálogo, sem achados, sem novidades empoeiradas do passado. Excluído o acaso, com livreiros tolhidos de exercer sua expertise, livrarias se tornam todas mais ou menos parecidas, mesmo que haja sagacidade na seleção dos títulos consignados. Como a totalidade das livrarias não tem capital para comprar títulos para compor seu acervo, tornam-se dependentes da distribuição consignada, impossibilitadas de criar sua identidade.

É por isso que sou cliente de sebos, que conseguem criar essa identidade. No Brasil, admiramos as livrarias argentinas por sua quantidade e qualidade. No entanto aquelas livrarias da Corrientes são, em sua maioria, sebos com lançamentos disponíveis aqui e ali, e por isso são boas.

Nesse sentido, voltando ao início, e tentando encontrar uma visão positiva da impressão por demanda (ando meio Poliana), talvez essas novas livrarias independentes que têm surgido (ao menos em SP), enfim compreendam que, para terem personalidade, terão de montar acervos que não dependam da triste toada dos lançamentos e das ofertas das editoras, compondo prateleiras dedicadamente e com variedade, com livros antigos e novos, importados e nacionais, com revistas e periódicos (do passado e do futuro). Só assim para as livrarias sobreviverem.

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Brasil, a série

(transcrevo abaixo respostas que dei em áudio a um repórter cuja pauta acabou caindo – aparentemente estas respostas contribuíram para isso acontecer)

Volta e meia vejo na timeline essa piada sobre o roteirista do Brasil estar maluco e tal. É curioso que isso seja tratado como uma piada, e uma piada que é levada a sério (a ponto de inspirar a divertida série Sala de Roteiro, do meu amigo Antônio Prata, que estreou esta semana). Outra expressão muito comum hoje, até banalizada, é “narrativa”: a narrativa disso, a narrativa daquilo. De fato, o Estado é voz determinante, a voz narrativa que determina o que é a realidade. Então, supondo que haja um roteiro, aquilo que o Estado dita poderia ser entendido como a voz protagonizadora daquilo que se entende como sendo Brasil, a Série? Se assim for, a narrativa ditada pelo Estado é das mais conformadoras daquilo que se entende por representativo de uma nação, de um país, de um Estado. Não tem nada de piada nisso. Essa narrativa tem construtores, tem protagonistas políticos, tem quem a escreva, portanto os roteiristas existem. Se pensarmos, por exemplo, no papel de Golbery do Couto e Silva como ideólogo da ditadura brasileira, como articulador dessa narrativa do Estado que está em primeiro plano e que oblitera, que esconde pontos importantíssimos de uma outra História que é excluída, que é deixada de lado, a gente pode entender que sim, há uma narrativa, há um roteiro, e infelizmente esse roteiro não tem muitas variações, na realidade essa piada não faz sentido nem enquanto piada, porque o essencial do roteiro, que é manter este país sobre os trilhos da dominação, do colonialismo, e que coloca em cena atores cujos papéis não mudam muito ao longo dos séculos, como o papel cumprido pela elite brasileira nessa história toda, nessa narrativa proposta pelo Estado, se você considerar assim, é uma história bastante óbvia, desautorizando a piada de que existe um roteirista maluco. Na realidade, o que está acontecendo é o óbvio, é uma narrativa que vem sendo contada pelo Estado há muito tempo, há quinhentos e vinte anos.

*

Como leitor, não sou dos mais adeptos dos romances de trama, em geral são os mais pobres literariamente falando, como por exemplo a literatura de gênero, o policial britânico clássico dos anos 30, Sherlock Holmes, Agatha Christie, que são lidos sob a expectativa de resolução da trama, que tem aspectos de jogo, até lúdicos, mas bastante limitadores. Os grandes romances não têm trama, são decorrentes dos dilemas existenciais e morais dos personagens ou do narrador, quando se pensa na literatura moderna narrada na primeira pessoa. Portanto, se considerarmos que, isso no ambiente da ficção realista do século XIX, o protagonista se transforma ao longo do relato, começa de um jeito e termina de outro, eu diria que o personagem mais importante e o mais fracassado dessa narrativa do Brasil atual, ou do Brasil de sempre, é o povo. É um personagem de coro grego, múltiplo, um personagem multitudinário. E por que é o mais importante, ao menos potencialmente? Porque não se transforma, esse personagem Povo Brasileironasceu submisso, aparentemente, e vai morrer submisso, sem se rebelar diante das opressões, sem se rebelar diante da narrativa do Estado: ele não se transforma ao longo de Brasil, o Romance, portanto é o personagem mais importante, o provável protagonista, afinal quem sabe ele não nos surpreenda, pois o final ainda está um pouquinho longe de chegar. Então minha expectativa é a de que esse povo-bunda, o Povo Brasileiro, em algum momento deixe de ser assim e se transforme num povo-bíceps, um povo que saia dando porrada nos dominadores e resolva transformar este país numa nação digna do nome.

*

Uma das teorias mais conhecidas da ficção é a da importância da história secreta. Todos conhecem a teoria do iceberg do Hemingway, que defende que apenas uma parte do relato, a correspondente ao pico, é mostrada, mas o que realmente move a essência da narrativa é a parte submersa, oculta. Ricardo Piglia inventou sua variação dessa teoria ao afirmar que um conto é sempre duas histórias, uma secreta e outra na superfície, e que o conto propriamente dito resulta do encontro da história secreta com a história visível. Com isso em mente, na História do Brasil tudo é secreto. Este nosso iceberg tropical tem partes enormes que correspondem àquilo que não é dito, partes obscuras, às quais nós, como espectadores e ao mesmo tempo vítimas, não temos acesso, não conhecemos. Ultimamente as revelações através dos vazamentos de áudios, de telefonemas grampeados, têm sido elemento importante dessa narrativa do Estado, que mantém a audiência alerta por meio da ilusão de que algo lhe é revelado dessa história secreta. No entanto, acredito que o que perdura verdadeiramente é a história secreta, da qual temos pouquíssimos dados reais e concretos, e na medida em que não a conhecemos, dificilmente poderemos ter uma noção clara daquilo que ocorre propriamente na narrativa, sobre aquilo que está acontecendo de verdade, e com isso não fazemos ideia do que pode vir a acontecer.

*

Não consigo me entreter com Brasil, a Série, Brasil, a Narrativa, Brasil, a Piada, apenas me entristecer. Não me sinto dentro de uma obra de ficção, embora possamos apelar a uma porrada de conceitos, incluindo o budismo, de que vivemos sob um véu de ilusões, ou o Eclesiastes bíblico, nada de novo sob o sol, e que tudo faz parte de uma ilusão. Ou mesmo as ideias de William S. Burroughs, que considerava a consciência humana como uma base pré-gravada que se repete ad infinitum, em loop, que a realidade, portanto, também não passa de uma iloopsão. Considerando isso tudo, certamente vivemos numa obra de ficção, sendo que a consciência humana é a Grande Ficção a qual estamos presos. No entanto, esses episódios mesquinhos que correspondem à narrativa Brasil, o Romance, não me entretêm, apenas me entristecem. Por outro lado, quando assisto a uma série televisiva, por exemplo estou vendo agora Game of Thrones, que ainda não tinha visto, e sua trama rocambolesca, que é política na essência, a luta entre famílias, entre castas etc, e o povo ali embaixo no papel de capacho, escravizado, me entretenho, pois é uma corruptela, uma pobre tentativa de reproduzir o que acontece na realidade. Contudo, na medida em que percebemos os efeitos que a narrativa do Estado causa, e estão nas ruas todo dia (moro no centro de São Paulo, eu saio e vejo a população de rua aumentando dia a dia, é impossível andar dez metros sem ver pessoas implorando por comida); na medida em que acontece, não consigo perceber isso como uma ficção, e sim como a mais trágica realidade, à qual estamos presos e não parece existir plot twist ou final feliz que possa nos salvar.

*

A narrativa realista do século XIX pressupunha que o protagonista passaria por um monte de perrengues ao longo da história, mas no final se daria bem. Então o Oliver Twist lá no Charles Dickens passa pelas piores situações, é órfão, sofre pra diacho, entretanto acaba bem posto, casado e feliz. O conde de Monte Cristo consegue escapar da masmorra e se vingar daqueles que o traíram e aprisionaram. O leitor que mergulhava numa narrativa do século XIX comprava o livro já sabendo que ficaria de boa, pois a história acabaria bem. Nesse sentido a narrativa realista não tem nada a ver com a realidade, já que a realidade não reserva final feliz a ninguém, na realidade todos morrem. Esse é o final costumeiro no plano da realidade, assim que a literatura realista nada tem de real, não corresponde à realidade. Portanto, sobre essa narrativa a que assistimos em Brasil, a Série, só temos a certeza de que o final será triste e infeliz, porque assim é a vida. Ou, caso consideremos que não estamos mesmo dentro de uma ficção, será um final feliz, já que o único final feliz, que faz parte de toda a existência, é justamente morrer, acabar, acaba uma geração, morre todo mundo, vem uma nova, morre todo mundo, e todo mundo vira poeira de estrela, alimentando este planeta, alimentando o Cosmos. O único final feliz para o Universo, e digo isso hoje que estou num dia particularmente otimista já que é segunda-feira, é a extinção da espécie humana. É o único final feliz possível para o Universo.

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Em outubro, na França

La Mort et le Météor_capa

Joca Reiners Terron

La Mort et le Météore

Roman traduit du portugais (Brésil) par Dominique Nédellec

Presse : Anaïs Hervé • 06 13 66 06 67 • aherve@agencelabande.com
assitée par Alexia Di Paco • 06 12 66 85 34 • adipaco@agencelabande.com

Librairie : Valentin Féron • 01 58 22 19 90 • valentin.feron@zulma.fr

Alors que l’Amazonie ne compte plus que quelques hectares brûlants comme l’enfer, et qu’une mission spatiale chinoise doit rejoindre Mars, l’énigmatique Boaventura cherche à sauver les cinquante derniers Indiens kaajapukugi. C’est au Mexique, en territoire mazatèque, que ces anarchistes avant l’heure trouvent asile, avec une ultime provision de tinsáanhán, la poudre de hanneton grâce à laquelle ils accèdent aux mondes supérieurs. Mais le vieux Boaventura, qui doit les accueillir, est soudain rattrapé par son passé sulfureux et meurt dans de mystérieuses circonstances à la veille de l’arrivée des Kaajapukugi…

Extraordinaire immersion dans un univers luxuriant et fascinant, La Mort et le Météore mêle avec panache roman d’aventures survolté, polar haletant pimenté d’une audacieuse pointe de science-fiction et récit déjanté.

https://www.zulma.fr/livre-la-mort-et-le-meteore-572203.html

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