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Avenida do Fauno

Imagine que o fauno esculpido por Brecheret, adormecido por décadas entre as ramagens do Parque Trianon, desperte nesta noite de aniversário da cidade. Depois de se espreguiçar, ele salta as grades e sai a passeio pela Paulista. O que irá ver?

Nada de arbustos para se resfolegar, isto é certo — a Mata Atlântica que ora existe é apenas a que ele recém deixou para trás, mínima e quase nenhuma — diante do Masp, confunde-se mesmo com um museu da natureza.

Mas há agora o que antes não havia, espelhos aonde se refletir. O fauno se verá multiplicado aos milhares nas vitrines esfumaçadas das portas cerradas de bancos e prédios enormes cujos nomes são siglas. Ele haverá de estranhar se ver somente a si no reflexo dos vidros, pois nunca existe ninguém no avesso interno dos edifícios desta avenida. Nem um só vulto que lhe acene. Ninfas nenhumas.

Fauno prestes a virar minotauro, nosso amigo agora se depara com monstros inéditos na mitologia, mas que abundam no mundão humano: seres diminutos de cabeças descomunais caminham em sua direção, as mãos abertas em cujas palmas viradas aos céus também nada se encontra, nem migalha nem níquel. Nem mesmo chuva escorre ali.

Então surgem outras bestas mitológicas: duelando com os carros, Fofão sopra suas bochechas cheias de vento e silicone vencido. Com efeitos especiais, sua tristeza convence os passantes, que lhe disparam vinténs com fúria. Agora silvam ao redor do fauno outros faunos com rodas, sobre skates e outros bichos desconhecidos que deslizam. Nosso amigo se anima a afinar os cascos nas largas esplanadas da avenida. Ele galopa. O dióxido de carbono levanta seus cabelos.

E daí, para os lados da Augusta, ele deixa de lamentar o sumiço dos casarões e seus jardins cheios de vaga-lumes. Hordas de sátiros e ninfas de mãos dadas vêm em sua direção. Estão felizes. Embora cercados por muros altíssimos iluminados por cifrões, eles gozam de estranha liberdade. Isto parece a Grécia antiga, o fauno pensa. Acaba de ver as luzes da Paulista. Ele nunca mais se resignará ao silêncio do Trianon.

[ Escrito faz muito tempo, em algum aniversário passado de São Paulo, que hoje faz 470 anos, em algum momento mais otimista. Nesse ínterim entre o texto e hoje, a cidade mudou muito, abandonada que foi pelos últimos três prefeitos. Nunca foi tão cinzenta – e olha que sou daqueles que vêem beleza no cinzento –, triste e perigosa. Eu nunca quis sair de SP, coisa que sempre diagnostiquei como síndrome típica de paulistano da gema – o ímpeto de cair fora e viver no mato ou na praia –, mas ando sentindo isso. Terei me tornado um paulistano típico, depois de 29 anos na cidade? Não sei. Só sei que esse sentimento deve ser substituído por seu contrário, o desejo de ocupar praças e ruas, de ficar, de cuidar, de preservar e amar o lugar onde se vive. O desejo de refrear o dinamismo dessa cidade, que às vezes se confunde com pulsão de morte e destruição – de si mesma. Feliz aniversário, SP. ]

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Fé no inferno

Descubro que o novo romance do amigo Santiago Nazarian, Fé no Inferno, sai em impressão sob demanda. É decisão circunstancial e temporária da Companhia das Letras, parece. Também é o fim de uma era: a regida pelo acaso, na qual entrávamos na livraria e comprávamos um livro à revelia.

Ou seja: para comprar o livro, agora o leitor deve estar determinado: encomendá-lo ao livreiro ou à editora. E comigo nunca (na grande maioria das vezes) funcionou assim. Entro na livraria para comprar o livro X e saio com o Y (ou com X e Y e talvez o Z). O acaso é determinante.

É válido dizer que não se é mais possível entrar numa livraria e zanzar pelas prateleiras por tempo indeterminado (por ex, minha loja predileta de LPs permite atualmente a entrada de um só cliente por vez, por 10 parcos minutos, insuficientes para escarafunchar prateleiras).

Isso, espero, é circunstancial: as livrarias voltarão a reunir leitores, assim que possível. O que me parece outra coisa, talvez mais assustadora, é que editoras descubram a validade de se imprimir livros sob demanda, restringindo ainda mais o alcance das obras de ficção.

Ou assumindo que o alcance da ficção literária, como quer o crítico italiano Massimo Rizzante, é o mesmo alcançado pela poesia, cujo público sempre foi minoritário. A impressão por demanda, por extensão, seria a pazada de terra final no papel cultural representado pelo livreiro.

Cujo precedente, talvez, tenha sido a distribuição de livros por consignação, que igualmente afetou o modo como o leitor moderno opera em sua busca por conhecimento ou distração – e veja só a relação dessa palavra com a caça distraída de livros que defendo aqui –, determinada pela oferta, não somente pela demanda.A consignação restringiu o acervo das livrarias aos lançamentos.

Livrarias podem montar de modo mais acessível seu acervo, que porém se torna cinzento, composto apenas por lançamentos, sem títulos fora de catálogo, sem achados, sem novidades empoeiradas do passado. Excluído o acaso, com livreiros tolhidos de exercer sua expertise, livrarias se tornam todas mais ou menos parecidas, mesmo que haja sagacidade na seleção dos títulos consignados. Como a totalidade das livrarias não tem capital para comprar títulos para compor seu acervo, tornam-se dependentes da distribuição consignada, impossibilitadas de criar sua identidade.

É por isso que sou cliente de sebos, que conseguem criar essa identidade. No Brasil, admiramos as livrarias argentinas por sua quantidade e qualidade. No entanto aquelas livrarias da Corrientes são, em sua maioria, sebos com lançamentos disponíveis aqui e ali, e por isso são boas.

Nesse sentido, voltando ao início, e tentando encontrar uma visão positiva da impressão por demanda (ando meio Poliana), talvez essas novas livrarias independentes que têm surgido (ao menos em SP), enfim compreendam que, para terem personalidade, terão de montar acervos que não dependam da triste toada dos lançamentos e das ofertas das editoras, compondo prateleiras dedicadamente e com variedade, com livros antigos e novos, importados e nacionais, com revistas e periódicos (do passado e do futuro). Só assim para as livrarias sobreviverem.

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Brasil, a série

(transcrevo abaixo respostas que dei em áudio a um repórter cuja pauta acabou caindo – aparentemente estas respostas contribuíram para isso acontecer)

Volta e meia vejo na timeline essa piada sobre o roteirista do Brasil estar maluco e tal. É curioso que isso seja tratado como uma piada, e uma piada que é levada a sério (a ponto de inspirar a divertida série Sala de Roteiro, do meu amigo Antônio Prata, que estreou esta semana). Outra expressão muito comum hoje, até banalizada, é “narrativa”: a narrativa disso, a narrativa daquilo. De fato, o Estado é voz determinante, a voz narrativa que determina o que é a realidade. Então, supondo que haja um roteiro, aquilo que o Estado dita poderia ser entendido como a voz protagonizadora daquilo que se entende como sendo Brasil, a Série? Se assim for, a narrativa ditada pelo Estado é das mais conformadoras daquilo que se entende por representativo de uma nação, de um país, de um Estado. Não tem nada de piada nisso. Essa narrativa tem construtores, tem protagonistas políticos, tem quem a escreva, portanto os roteiristas existem. Se pensarmos, por exemplo, no papel de Golbery do Couto e Silva como ideólogo da ditadura brasileira, como articulador dessa narrativa do Estado que está em primeiro plano e que oblitera, que esconde pontos importantíssimos de uma outra História que é excluída, que é deixada de lado, a gente pode entender que sim, há uma narrativa, há um roteiro, e infelizmente esse roteiro não tem muitas variações, na realidade essa piada não faz sentido nem enquanto piada, porque o essencial do roteiro, que é manter este país sobre os trilhos da dominação, do colonialismo, e que coloca em cena atores cujos papéis não mudam muito ao longo dos séculos, como o papel cumprido pela elite brasileira nessa história toda, nessa narrativa proposta pelo Estado, se você considerar assim, é uma história bastante óbvia, desautorizando a piada de que existe um roteirista maluco. Na realidade, o que está acontecendo é o óbvio, é uma narrativa que vem sendo contada pelo Estado há muito tempo, há quinhentos e vinte anos.

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Como leitor, não sou dos mais adeptos dos romances de trama, em geral são os mais pobres literariamente falando, como por exemplo a literatura de gênero, o policial britânico clássico dos anos 30, Sherlock Holmes, Agatha Christie, que são lidos sob a expectativa de resolução da trama, que tem aspectos de jogo, até lúdicos, mas bastante limitadores. Os grandes romances não têm trama, são decorrentes dos dilemas existenciais e morais dos personagens ou do narrador, quando se pensa na literatura moderna narrada na primeira pessoa. Portanto, se considerarmos que, isso no ambiente da ficção realista do século XIX, o protagonista se transforma ao longo do relato, começa de um jeito e termina de outro, eu diria que o personagem mais importante e o mais fracassado dessa narrativa do Brasil atual, ou do Brasil de sempre, é o povo. É um personagem de coro grego, múltiplo, um personagem multitudinário. E por que é o mais importante, ao menos potencialmente? Porque não se transforma, esse personagem Povo Brasileironasceu submisso, aparentemente, e vai morrer submisso, sem se rebelar diante das opressões, sem se rebelar diante da narrativa do Estado: ele não se transforma ao longo de Brasil, o Romance, portanto é o personagem mais importante, o provável protagonista, afinal quem sabe ele não nos surpreenda, pois o final ainda está um pouquinho longe de chegar. Então minha expectativa é a de que esse povo-bunda, o Povo Brasileiro, em algum momento deixe de ser assim e se transforme num povo-bíceps, um povo que saia dando porrada nos dominadores e resolva transformar este país numa nação digna do nome.

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Uma das teorias mais conhecidas da ficção é a da importância da história secreta. Todos conhecem a teoria do iceberg do Hemingway, que defende que apenas uma parte do relato, a correspondente ao pico, é mostrada, mas o que realmente move a essência da narrativa é a parte submersa, oculta. Ricardo Piglia inventou sua variação dessa teoria ao afirmar que um conto é sempre duas histórias, uma secreta e outra na superfície, e que o conto propriamente dito resulta do encontro da história secreta com a história visível. Com isso em mente, na História do Brasil tudo é secreto. Este nosso iceberg tropical tem partes enormes que correspondem àquilo que não é dito, partes obscuras, às quais nós, como espectadores e ao mesmo tempo vítimas, não temos acesso, não conhecemos. Ultimamente as revelações através dos vazamentos de áudios, de telefonemas grampeados, têm sido elemento importante dessa narrativa do Estado, que mantém a audiência alerta por meio da ilusão de que algo lhe é revelado dessa história secreta. No entanto, acredito que o que perdura verdadeiramente é a história secreta, da qual temos pouquíssimos dados reais e concretos, e na medida em que não a conhecemos, dificilmente poderemos ter uma noção clara daquilo que ocorre propriamente na narrativa, sobre aquilo que está acontecendo de verdade, e com isso não fazemos ideia do que pode vir a acontecer.

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Não consigo me entreter com Brasil, a Série, Brasil, a Narrativa, Brasil, a Piada, apenas me entristecer. Não me sinto dentro de uma obra de ficção, embora possamos apelar a uma porrada de conceitos, incluindo o budismo, de que vivemos sob um véu de ilusões, ou o Eclesiastes bíblico, nada de novo sob o sol, e que tudo faz parte de uma ilusão. Ou mesmo as ideias de William S. Burroughs, que considerava a consciência humana como uma base pré-gravada que se repete ad infinitum, em loop, que a realidade, portanto, também não passa de uma iloopsão. Considerando isso tudo, certamente vivemos numa obra de ficção, sendo que a consciência humana é a Grande Ficção a qual estamos presos. No entanto, esses episódios mesquinhos que correspondem à narrativa Brasil, o Romance, não me entretêm, apenas me entristecem. Por outro lado, quando assisto a uma série televisiva, por exemplo estou vendo agora Game of Thrones, que ainda não tinha visto, e sua trama rocambolesca, que é política na essência, a luta entre famílias, entre castas etc, e o povo ali embaixo no papel de capacho, escravizado, me entretenho, pois é uma corruptela, uma pobre tentativa de reproduzir o que acontece na realidade. Contudo, na medida em que percebemos os efeitos que a narrativa do Estado causa, e estão nas ruas todo dia (moro no centro de São Paulo, eu saio e vejo a população de rua aumentando dia a dia, é impossível andar dez metros sem ver pessoas implorando por comida); na medida em que acontece, não consigo perceber isso como uma ficção, e sim como a mais trágica realidade, à qual estamos presos e não parece existir plot twist ou final feliz que possa nos salvar.

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A narrativa realista do século XIX pressupunha que o protagonista passaria por um monte de perrengues ao longo da história, mas no final se daria bem. Então o Oliver Twist lá no Charles Dickens passa pelas piores situações, é órfão, sofre pra diacho, entretanto acaba bem posto, casado e feliz. O conde de Monte Cristo consegue escapar da masmorra e se vingar daqueles que o traíram e aprisionaram. O leitor que mergulhava numa narrativa do século XIX comprava o livro já sabendo que ficaria de boa, pois a história acabaria bem. Nesse sentido a narrativa realista não tem nada a ver com a realidade, já que a realidade não reserva final feliz a ninguém, na realidade todos morrem. Esse é o final costumeiro no plano da realidade, assim que a literatura realista nada tem de real, não corresponde à realidade. Portanto, sobre essa narrativa a que assistimos em Brasil, a Série, só temos a certeza de que o final será triste e infeliz, porque assim é a vida. Ou, caso consideremos que não estamos mesmo dentro de uma ficção, será um final feliz, já que o único final feliz, que faz parte de toda a existência, é justamente morrer, acabar, acaba uma geração, morre todo mundo, vem uma nova, morre todo mundo, e todo mundo vira poeira de estrela, alimentando este planeta, alimentando o Cosmos. O único final feliz para o Universo, e digo isso hoje que estou num dia particularmente otimista já que é segunda-feira, é a extinção da espécie humana. É o único final feliz possível para o Universo.

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Curva de Rio Sujo On My Mind

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Afinal, hoje “Não Devore Meu Coração” está nos cinemas após aclamada passagem pelos festivais de Sundance, Berlim, Brasília e outros. Não sou apóstolo, mas venho dar meu testemunho da paixão. No caso, a de Felipe Bragança pelo livro “Curva de Rio Sujo”, que inaugurou em 2003 meu fronteiriço mundo privado com histórias passadas na região que surge no filme, um lugar aonde evitei regressar por décadas, pois não queria conspurcar aquilo que vivia na lembrança. Felipe me obrigou a voltar, e o que encontrei permanecia intocado: é como se Felipe recuperasse as imagens que estão no livro, imagens que pertenciam às minhas torpes lembranças e que traduzi em relatos, e as devolvesse novamente à condição de imagens que originalmente eram, no limbo entre a lembrança e o sonho. Assistir ao filme me causou estranho desconforto, misto de pudor de ver ali à frente de todos aquilo que se escondia em meu mundo privado, em minha vida secreta, com uma felicidade cálida, viva. E o rosto de Basano La Tatuada, que carreguei em sua versão 3X4 durante anos em minha carteira mofada, permanecia igual e a paixão guarani de Joca por ela permanecia igual, pura, intocada como as samambaias e avencas que despencam suas sombras sobre as águas barrentas do Apa. Desde o início, e foi um longo início, há quase dez anos, eu carregava a certeza de que um filme movido pela paixão só poderia resultar em amor e amizade e em algo perene, tão perene quanto as lembranças. Obrigado, Felipe e turma. Amigos, convido-os a ver o filme.

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Roubando Wilson Bueno

Diante da incumbência de escrever um artigo sobre Wilson Bueno (1949-2010), percorri as empoeiradas prateleiras de minha estante em busca de seus livros, sem encontrá-los. Deveriam estar lá, mas tinham desaparecido, assim como o próprio Bueno. Como lembrança um tanto tímida, restava apenas a edição tipográfica de Manual de Zoofilia realizada pela Editora Noa Noa em 1991. Em seu frontispício me deparei com a seguinte inscrição: “Rapto poético operado na Livraria Ghignone, setembro de 1993, Curitiba”. A letra torta, sem dúvida, é minha; igualmente, a mania avessa de roubar livros.

Com isso, cogitei a possibilidade de que os outros títulos de Bueno, quem sabe um troco devolvido a este bibliófilo gatuno pelo destino, tivessem sido roubados por um viciado torpe qualquer. A chance de ter acontecido não é remota, pois mantenho convivência intensa com os de minha laia. E boa parte dos livros do autor paranaense terminam por inspirar tal comportamento tão repreensível (de repente lembro que escrevo para o veículo impresso de uma biblioteca), pois são raros. Contudo sua rareza não é resumida à dificuldade de encontrá-los, estendendo-se ao conteúdo estranho e à fatura incomum. Numa paráfrase do excerto de Shakespeare que abre o Manual, é possível afirmar que os livros de Wilson Bueno são afins com o reino animal porque gritam quando são lidos e esse grito pode enlouquecer quem os lê. São, portanto, o puro grito de uma subjetividade, como afirmou Leminski.

Por muito tempo, porém, Wilson atendeu por nome diferente entre os poetas de minha quadrilha, uns tarados por literatura que se reuniam em volta de um trailer de cachorro-quente chamado Baleia Azul, no campus da Ilha do Fundão em frente à faculdade de letras no final dos anos 80, e depois, na Unesp de Bauru dos anos 90. Nessa época, todos esses delinquentes chamavam Wilson Bueno de Nicolau, suplemento literário que fez a cabeça de uma geração inteira e cuja identificação com seu editor só não era maior do que aquela existente conosco, com seus leitores. Éramos então o próprio Nicolau, e através de sua absorção periódica nos tornávamos um pouco representantes da geração de escritores publicada em suas páginas. Havia um iceberg emergindo ali que representava a ponta da literatura a ser produzida na década seguinte.

Em suma, ao sermos todos nicolaus, nos tornávamos — matogrossenses, paulistas, cariocas — um tanto paranaenses. Ou ao menos assim desejávamos sê-lo: um pouco Valêncio Xavier e Manoel Carlos Karam; um mix nipoguarani de Alice Ruiz com Josely Vianna Baptista; mezzo Leminski mezzo Jamil Snege: totalmente Wilson “Nicolau” Bueno. Através das páginas do jornal também aprendemos a nos espelhar em autores mais jovens, como os poetas de Londrina, a San Francisco hippie beatnik de Marcos Losnak, Rodrigo Garcia Lopes, Mário Bortolotto e Maurício Arruda Mendonça sob os auspícios orientais de Nenpuku Sato, Haruo Ohara, Shinshiti Minowa et alii.

Finda a aventura jornalística, chegaria a literatura propriamente desdita de Wilson, gestada enquanto ele editava o Nicolau, surgindo os Buenos y Malos de Mar Paraguayo (1992) e Cristal (1995), seu primeiro romance, além de toda a animália mitopoética usada para retratar o confuso erotismo humano de Manual de Zoofilia (1991) ou os tankas de Pequeno Tratado de Brinquedos (1996); Bolero’s Bar (1986), um pré-Wilson, tratava-se então de pura lenda inalcançável, conhecida somente com a edição conjunta com o inédito Diário Vagau (posterior, de 2007).

Bueno era um exímio esgrimista da poesia em prosa, gênero que exige mãos hábeis e despudoradas. Nesse terreno, não é difícil atolar em certo tom altissonante que pode melar de artificialismo qualquer peça literária. Suas narrativas mais apreciadas, como a novela Mar Paraguayo ou Meu Tio Roseno a Cavalo, estão impregnadas de uma forma mestiça que trafega entre o lírico e o experimental, desequilibrando-se na selvageria do portunhol sem deixar de lado algum aspecto paródico (feito o machadiano Amar te a ti nem sei se com caricias e os ecos de Rosa em Tio Roseno), mas sem incorrer em pompa. Apoiada na animalidade e em certa poética do mínimo e do impuro, WB parece ter pés fincados tanto em Manoel de Barros quanto em certo nebarroso perlongheriano com o qual permanece fortemente identificado.

O romance Mano, a noite está velha (2011), primeiro póstumo de Bueno a ser publicado, é sua ficção mais pessoal. Em tom de peroração insone, um narrador sexagenário conversa com o irmão morto acerca da vida e dos erros de ambos, estendendo-se noite adentro. O “Mano” do título é às vezes substituído por “Bolaño” ou “Hilda” (a Hilst, certamente), suscitando esquisitices que são acrescidas de outras tantas coincidências relacionadas ao triste destino do autor, o malfadado amor homo-erótico dentre elas, numa identificação romântica do destino existencial do escritor.

Profeta barroco, Wilson Bueno anteviu seu próprio final entre as linhas tortuosas desse belo testamento literário. Assassinado brutalmente no ano passado, sua perda ainda não foi de todo assimilada pelo meio cultural brasileiro. E não é de todo irreprensível pensar que, enquanto roubávamos seus livros, alguém o roubava de nós.

Publicado no jornal Cândido, da BPPR, em 2011

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A revolução das coisas (notas subjetivas sobre uma peça teatral coletiva)

A revolução das coisas está em pleno curso. Não se trata de um movimento que busque resguardar os direitos do consumidor, mas daquilo que é consumido. Nada de discussões teóricas acerca de temas jurídicos ou de aprofundamento psicanalítico, afinal coisas não têm voz ou psique. As coisas querem ação, querem protagonismo. Anseiam por ser personagem, e não pertencer ao cenário.

Contudo, as coisas não requerem condições de igualdade. Não desejam apenas “comprar” seus compradores. Se existe algo que elas acumulam sobre si — ou dentro de si — é a ânsia humana pela possessão, a angústia pelo fracasso em obtê-las ou a leviandade de seu próprio abandono — elas não suportam ser abandonadas. Essas são características de seus proprietários ou de seus pretendentes que elas herdaram. As coisas são depositárias dos imateriais defeitos humanos, são restos e herança, ao mesmo tempo. Como nas crenças espíritas, elas atraem, guardam e metabolizam sentimentos e sua exigência agora é devolvê-los aos donos. Fazer com que experimentem a coisificação imediata, que eles também provem a sensação de ser coisa. Trata-se da vingança dos objetos, e, em vez de almejarem o consumo, eles promovem a transformação dos consumidores em objetos de consumo. Eles viram o jogo.

É disso que falamos: desse impossível drama entre sujeito e objeto, entre coisa e ser, entre cenografia e personagem. Os personagens têm aspecto fantasmagórico por já se encontrarem no limbo, no limite entre objeto e sujeito. Ainda não sofreram total metamorfose, mas estão a caminho disso. O público está presente apenas para assistir os capítulos finais de tal embate, que é encadeado através dos seguintes conflitos:

  1. A Consumidora deseja ardentemente o Vestido Vermelho, sem consegui-lo. O Vestido Vermelho a persegue, apavorando a imaginação da Consumidora, até inverter a situação — ao persegui-la, o Vestido Vermelho é que se apropria da Consumidora, e não o contrário, transformando-a num vestido, no objeto de seu desejo. Ao final, ao mesmo tempo que a estrangula, o Vestido Vermelho estende seu tecido à Consumidora, metamorfoseando-se nela. Tornam-se uma só coisa.
  2. O Errante deseja libertar as coisas de seu sofrimento. “Liberta” as moedas da Fonte dos Desejos. Destrói símbolos que personificam o comércio, como placas anunciando liquidações e vendas no atacado. Ao lado da Faxineira Filósofa é o único a ter consciência do que acontece, embora a manifeste por meio de seus atos e não verbalmente. É um terrorista lírico, e comunica-se por meio de eventos.
  3. Ao surgir, a Noiva já apresenta membros plásticos. Devido ao estágio de transformação não completado em que se encontra, ela esboça certa consciência crítica, e questiona se deve mesmo seguir o modelo de noiva que lhe foi imposto (ou por ela desejado). Mas transformar-se em manequim é questão de horas. De minutos, talvez. A partir daí, transformada em noiva ideal, em boneco de vitrine de medidas perfeitas, o que ela pensará?
  4. A relação do Solitário com as manequins é invertida, pois ele as enxerga como seres vivos, e é através de sua imaginação ou de seus delírios de fetichista que o público tem acesso aos diálogos. O Solitário conversa apenas imaginariamente com as manequins, que representam de modo mais explícito o abandono sofrido pelas coisas, justamente o que principia sua revolta. A fala das manequins traduz o sofrimento dos objetos. Algo, porém, no isolamento de seu abandono torna as vísceras plásticas delas em vísceras verdadeiras. O coração bate uma, duas vezes, depois não para mais. Não há revolução sem dissidências.
  5. Na conversa entre Rádio Infinita e a Gerente da Oficina de Costura sabe-se da rebelião em curso e da chegada do Demônio das Coisas Sem Dono, um golem que representa o imenso abandono sofrido pelas coisas, o Dibutronik. A Gerente sabe das coisas, representa a visão de um mundo rural que se opõe ao urbano, é uma espécie de bruxa arquetípica. Ela costurou o Vestido Vermelho, amaldiçoando-o, e tem responsabilidade sobre o curso dos eventos.
  6. Diva Lhama, graças aos ensinamentos de seu guru Dalai Lhama, é uma personagem que atingiu a iluminação e intuiu que não era mais dona de todas as coisas que reunira, mais bem o contrário: ela foge para não ser possuída pelas coisas que tem. A única possibilidade de fuga é o isolamento monástico, e por isso Diva Lhama desaparece. Mas essa repetição de procedimentos de rockstars do passado não sugere uma nova estratégia de venda, a recauchutagem espiritual do personagem? Inconformada por ter se deixado enganar, a Diva retorna às origens, animalizando-se.
  7. Consciente ou apenas intuitiva, a Faxineira Filósofa se mantém à margem dessa guerra. Ela está mais para uma legista dessa realidade, por não fazer economicamente parte do jogo de possessão e passividade existente entre sujeitos e objetos. Ela vê, imagina, pressente, e por isso sua fala é intensamente vaticinadora. No diálogo com a Manequim Defeituosa, ela procura avisar ao objeto sob sua condição primeva de coisa abandonada, e portanto, de sua condição de lixo. Ela procura avisar ao objeto, representado pela Manequim Defeituosa, depois tem o fluxo de consciência no qual delira, e então fala diretamente ao lixo que encontra na rua ao lado da Paralítica. Sua resposta é o advento do Dibutronik.
  8. O Cracômano foi abandonado tanto por sujeitos (seus semelhantes) quanto pelas coisas. Está apegado à pedra, que representa sua última chance de propriedade ou de consumo. A pedra, porém, também se rebela diante da posse. O amor que o Cracômano lhe dedica faz com que cresça, e ela termina por consumi-lo.
  9. O Quarteto Fantástico vende coisas falsas, imitações baratas de fantasias de super heróis, e cada um deles terminará preso à sua roupa, que colará à sua pele, impedindo que eles voltem a ser o que eram. A fantasia falsa que vendiam cola em seu corpo, substituindo-lhes a pele.

Há um sentido de a etapa final desse drama ser encenada no palco de um teatro em ruínas: é ali que a cenografia subjuga os atores ou personagens, substituindo-os em seu protagonismo. É o campo de batalha no qual os sujeitos habituais da realidade do mundo, os seres, são derrotados pelas coisas, pelos objetos. Não é, repetindo o que o Vestido Vermelho diz à Consumidora na cena final, “exatamente um lugar, mas um tempo. Uma hora, um minuto, um segundo. Um instante. É aqui. É agora.” Os objetos, afirma Wittgenstein, “constituem a substância do mundo (…) Se o mundo não tivesse substância, ter ou não sentido uma proposição dependeria de ser ou não verdadeira uma outra proposição. (…) Seria então impossível traçar uma figuração do mundo (verdadeira ou falsa).” A coisificação das pessoas transformaria o mundo num lugar fixo, sem vida. É por isso que o último ato não pode culminar senão em morte, em entropia.

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A parte maldita

Na noite de 8 de julho de 2013, Darrel Reynolds, um homem de 54 anos, foi preso no estado norte-americano do Texas por ameaçar a platéia de um cinema que exibia o filme Guerra Mundial Z. Nota: o acusado não apontava uma arma aos espectadores, mas seu dedo indicador. Com esse episódio, a representação simbólica do crime obteve alcance inédito, assumindo inegáveis contornos abstratos e afetando a tradicional compreensão jurídica do que pode ser considerado um crime. A partir daí, apenas o gesto que imite a ameaça é suficiente transgressão para ser criminalizado. A ser inaugurada na Galeria Vermelho, a exposição coletiva Suspicious Mind, com curadoria de Cristina Recupero, aborda a relação entre arte e crime e pretende aprofundar a reflexão a respeito do tema.

Esse jogo de atração e repulsa é antigo, e remonta ao seminal ensaio Do assassinato como uma das belas-artes, de Thomas De Quincey, de 1827. Evoca também a existência marginal de artistas como o poeta François Villon, nascido em Paris em 1431, e desaparecido após sair da prisão em 1463, e do célebre pintor Caravaggio (1571-1610). Ambos foram bandidos, e até hoje suas lendas inspiram a imagem romântica colada à figura dos artistas. Villon era ladrão, além de homem violento, e por muito pouco escapou da condenação à forca. Envolveu-se em um roubo ao colégio de Navarre em plena noite de Natal e em diversas tentativas de assassinato. Caravaggio tinha personalidade intempestiva e se meteu em terríveis brigas, assassinando um rapaz. Foi condenado pelo Vaticano, e provavelmente morreu envenenado por inimigos. As vidas de ambos seriam quase desconhecidas, não fossem seus registros criminais e sua obra artística.

De acordo com Cristina Recupero, a questão comportamental é importante em “Suspicious Mind”. “A imagem do artista é a de alguém que vive nas margens da sociedade recusando-se a cumprir com aquilo que está acima, as leis. De certa forma, o criminoso e o artista respondem a aspirações que estão além do comum”, afirma afirma a curadora, citando o incidente ocorrido com William S. Burroughs em 6 de setembro de 1951, quando em uma brincadeira de Guilherme Tell temperada a álcool e benzedrina, o escritor assassinou com um tiro na cabeça sua mulher Joan, cujas últimas palavras foram: “vou fechar os olhos. Não suporto ver sangue”. Com tais detalhes, a cena — ocorrida em uma villa da Cidade do México — parece um happening construído ao molde das idéias preconizadas por De Quincey em seu ensaio satírico sobre o assassinato como um evento estético.

Burroughs passou apenas 13 dias na prisão. Alguns biógrafos relatam a transformação ocorrida com o escritor depois da morte de Joan. Oliver Harris, organizador de sua correspondência, afirma que “a partir desse momento, sua vida é lida como como um romance; um romance que, é claro, muitos poucos gostariam de escrever e que talvez somente Burroughs pudesse viver e escrever.” É provável, porém, que além das consequências do homicídio praticado, outras causas modificaram Burroughs, conduzindo-o de vez à construção de sua obra literária.

Na contramão da exegese biográfica corroborada pela perspectiva sugerida por Suspicious Mind, a reportagem La Bala Perdida: William S. Burroughs en México (1949-1952), do escritor mexicano Jorge García-Robles, revela a influência da impunidade mexicana como essencial para a visão de mundo de Burroughs. Contraposto aos EUA, o México era “um país oriental que reflete dois mil anos de doenças e miséria e degradação e estupidez e escravidão e brutalidade e terrorismo físico e psicológico. México é sinistro e tenebroso e caótico, com o caos próprio dos sonhos. A mim me encanta”, escreveu Burroughs em uma carta a Jack Kerouac.

Presente na exposição, Habitat Sequences, instalação do artista visual e cineasta holandês Gabriel Lester (Amsterdã, 1974), estabelece pontos de contato com o episódio transformador experimentado pelo escritor beat no México. Composta por salas cujas paredes pintadas de preto são iluminadas através de desorientadores flashes vindos de diferentes pontos, a obra pode tanto simular a desorientação mental sentida às vésperas de uma catástrofe (pessoal, como a vivida por Burroughs, ou massiva feito a iminência de um terremoto), assim como a recomposição fragmentária do espaço habitado, em decorrência do que se mostra e se esconde ao apagar e acender das luzes. O efeito é poderoso.

Entre os destaques da mostra está também a video-artista francesa Lili Reynaud-Dewar (La Rochelle, 1975), cujo Speaking of Revolt, Media and Beauty aborda o pensamento de Jean Genet (1910-1986). Outro egresso do banditismo, o escritor e dramaturgo francês era ladrão, assim como seu predecessor Villon. Em sua apresentação aos ensaios de A Literatura e o Mal, Georges Bataille afirma que a geração a que pertence “é tumultuosa”. No mesmo livro, comenta o perfil de seu contemporâneo feito por Sartre em Saint Genet, que acompanha a trajetória desse filho de prostituta que roubou seus próprios pais adotivos, mendigou, foi preso, escreveu na prisão obras que apologizam o mal e incitam ao assassinato, e devido a isto — ao valor artístico de sua obra — recebeu o perdão por seus crimes. Apoiado no depoimento de Pierre Giquel, o video de Reynaud-Dewar investiga os tantos papéis contraditórios assumidos por Genet, de sua delinquência juvenil ao ativismo político da maturidade.

Relacionando-se com a recente prisão de Darrel Reynolds e seu indicador “armado”, a representação simbólica do crime aparece no trabalho da dupla paulistana Gisela Motta e Leandro Lima (São Paulo, 1976). Em Armas.obj, os artistas reproduzem fielmente em papel pistolas, submetralhadoras e fuzis utilizados como consoles de videogames.

A proposta faz lembrar a proibição britânica de venda de armamentos a civis, que gerou toda uma indústria de réplicas perfeitas nos mínimos detalhes, exceto por seu mecanismo inexistente e pelos canos maciços, inadequados aos disparos. Tais falsificações chegam a ser tão caras quanto as originais.

Com sua verve doentia, o escritor britânico J.G. Ballard (1930-2009) sentia fascínio por essa solução tão bizarra, que acabou ocasionando um crime simbólico praticado contra a rainha em 1981: “ela estava sentada em um cavalo, desfilando por Londres com uma coluna da cavalaria em alguma cerimônia. Quando dobrou a esquina e era observada pela multidão, um rapaz disparou nela seis tiros com uma dessas réplicas, seis tiros em falso. Foi preso. Pensei nesse episódio como uma maravilhosa obra conceitual. O rapaz poderia ter trabalhado para Andy Wahrol.” Profético, Ballard afirmou que no futuro as pessoas seriam presas por estampar em cartazes as palavras REVÓLVER ou ASSASSINATO. De acordo com a lógica exposta em Suspicious Mind, essa era em que a realidade e a fantasia não estão mais separadas já chegou.

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Em ritmo de desventura: RC na estrada

As chances de o amor se realizar sobre rodas se intensificaram a partir de Marlon Brando em “O Selvagem” (The Wild One, 1954). Antes disso o desejo tinha outro nome e só era possível sobre os trilhos de um bonde e nos fordecos de Bonnie & Clyde, chacoalhando nas cabines de trens e transatlânticos, sacudido em carruagens ou perseguido por índios a cavalo em diligências flamejantes. As motocicletas de Brando & seu bando foram cruciais para a consolidação do engenho mecânico como extensão periférica do homem no ato da conquista amorosa e, muito antes de vibradores se tornarem assistentes masculinos no projeto de conduzir a mulher amada ao orgasmo, pistons e amortecedores das Harley-Davidsons elevavam a trilha sonora dos amantes a mil por hora.

Esse movimento atingiria o paroxismo com “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause, 1955), onde o puro emblema do desejo da inadequação suburbana da jaqueta vermelha de Jim Stark (James Dean) rouba em definitivo as atenções de Judy (Natalie Wood), mas somente após Stark se submeter ao desafio ritualístico da aprovação social sobre pneus, sobrevivendo ao abismo onde seu oponente Buzz Gunderson (Corey Allen) sucumbe. Não dominar o volante àquela altura já designava o trágico final do sujeito em desacerto com as próprias rodas. E era assim que a solidão se precipitava, despenhadeiro abaixo.

Os motores também logo rugiram no rock and roll, que atualizava andanças rurais de bluesmen nos vagões abandonados dos trens, transladando-as para os centros urbanos, às avenidas iluminadas em cujas calçadas gingavam os teenagers, de início nas cidades norte-americanas, logo depois em toda a banda capitalista do mundo ocidental do pós-guerra, e muito mais rápido do que um chevy 55 pousando na rua Augusta. O sucesso da composição do maestro Hervé Cordovil (“Rua Augusta”), gravada por seu filho Ronnie Cord em 1960, inaugura a vertente menos açucarada do rock nacional (ainda vinculada às origens americanas dos anos 50 e antecipando o iê-iê-iê de extração beatle dos 60), irrompendo assim a 120 na broadway paulistana e dando a bandeirada para o arranque da futura Jovem Guarda. Para permanecer nas metáforas automobilísticas, a canção dos Cordovil “abre vácuo” para Roberto Carlos (vindo de temporada tão efêmera quanto mal sucedida na Bossa Nova) retornar ao rock e explodir em 1963 com “Parei na Contramão”, sua primeira canção a explorar o tema. A conquista amorosa com apoio hidráulico e pneumático era enfim inaugurada no imaginário romântico nacional, e em ritmo de contravenção (“Vinha voando pela rua/ Quando vi pela frente/ Na beira da calçada um broto displicente/ Joguei pisca-pisca pra esquerda e entrei/ A velocidade que eu vinha, não sei/ Pisei no freio obedecendo ao coração e parei/ Parei na contramão”), conduzida pelo tesão. Turbinados por aditivos de caráteres tão explosivos, como hoje reeducar para o trânsito corações e mentes brasileiras, embaladas há tanto tempo pelas expectativas do amor abençoado pelas benesses da velocidade criminosa?

Crônica de uma abordagem impossível em décadas anteriores àquela, “Parei na Contramão” demarca novos tempos para os jogos de sedução onde o broto “de família” (ainda uma noviça dos posteriores movimentos de liberação feminina — estamos nos early sixties) pode enfim ser abordado com ênfase e espalhafato nas ruas, sem ter sua moral ofendida (ou confundida) com a de uma profissional do ramo. O assunto renderia ainda mais louras e dividendos a Roberto no hit seguinte, “O Calhambeque”, versão de Erasmo Carlos para “Road Hog”, de Gwen & John Loudermilk. A história (e Erasmo certa vez afirmou não ser um poeta e sim um contista), de resto em tudo diferente da letra original, narra a desventura do proprietário de um Cadillac avariado que recebe a contragosto um calhambeque como estepe. O rapaz, cético das qualidades do carrinho, — playboy pragmático e sportsman do amor, indisposto a perder tempo sem o carrão — aos poucos se convence: o calhambeque é tiro e queda na paquera (“E logo uma garota fez sinal para eu parar/ e no meu calhambeque fez questão de passear”). Depois de descartar o Cadillac consertado (“Meu coração ficou com o calhambeque”), a canção se conforma de vez ao utilitarismo da simpática ximbica (“Mas agora eu vou-me embora/ Existem mil garotas querendo passear comigo”). Porém, ainda que pese alguma humildade do intérprete (“Mas é só por causa desse calhambeque, sabe/ Bye,bye”), é inquestionável que a canção não demarque a gênese da Maria Gasolina, essa Geni de beira de estrada, cujo corpo é dos roqueiros errantes sem destino.

Maldita Maria Gasolina, a assombrar avenidas e autopostos do mundo, parida sem querer numa canção de Erasmo. Em 1965, Roberto Carlos grava “Os Sete Cabeludos”, consagração e apogeu desta bad girl e uma constatação por parte do “conquistador” de que aquelas garotas pelas quais ele vinha se arriscando destrambelhado na via oposta (em automóveis novos ou velhos), não eram assim lá tão desavisadas. A Lili de “Os Sete Cabeludos” é o estereótipo da mulher livre, para o bem e para o mal (sendo Maria Gasolina ou não), aquela que sabe escolher o que bem entende e também a quem pretende: “Um cara esquisito seu braço segurou/ E um beijo da Lili o atrevido roubou/ Eu vinha em meu carro em doida disparada/ Com sete cabeludos pra topar qualquer parada/ Foi quando, de repente a cena eu avistei/ E o freio do carango bruscamente eu pisei/ Sem mesmo abrir as portas e sem botar as mãos/ Pulamos todos sete para entrar em ação/ Brigamos muito tempo/ (…)/ Porém maldita hora que eu fui olhar pra trás/ A cena que eu vi não esqueço nunca mais/ Lili toda contente na esquina conversava/ Com o cara esquisito que a pouco lhe beijava/ Estava indiferente àquela confusão/ Lili era bonita mas não tinha coração/ Então juramos todos sete/ Palavra de rapaz que por garota alguma/ Não brigamos nunca mais”. A inocência dos rapazes se apagou feito uma brasa, mora?

À essa altura o que havia de espontâneo na cultura teen havia sido absorvido e empacotado em mercadoria por todo o mundo. Em 1959 Elvis já fora “desarmado” ao ser enviado para o exército. Pouco depois mães e filhas ouviriam Frankie Avalone juntas, sem mais conflitos. E foi então que (em 1964) os Beatles invadiram os EUA.

No Brasil, as tardes de domingo derretem sob os holofotes do programa Jovem Guarda. Entrentanto, a dromomania de Roberto — sua compulsão para caminhar — se expande, migrando das ruas da grande cidade moderna para as estradas, num inequívoco movimento de fuga. Nasce então uma série de canções registradas entre 1969 e 1971 (“As Curvas da Estrada de Santos”, “Sentado à Beira do Caminho” — esta gravada por Erasmo —, “120…150… 200km Por Hora” e “Eu Só Tenho um Caminho”) cujas temáticas são a solidão e o abandono (“Você vai pensar que eu não gosto nem mesmo de mim/ E que, na minha idade, só a velocidade anda junto a mim/ Só ando sozinho e no meu caminho o tempo é cada vez menor/ Preciso de ajuda, por favor me acuda, eu vivo muito só”), aliados ao desespero (“Esse sol que queima no meu rosto um resto de esperança”). Não à toa, algumas das músicas de maior longevidade estética do Rei são daquele período. Simultâneo à perda dos sentidos e da perspectiva, surge um afunilamento em direção à estrada, escapando do passado (“O tempo diminui/ As árvores passam como vultos/ A vida passa, o tempo passa/ Estou a 130/ As imagens se confundem/ Estou fugindo de mim mesmo”), em busca do verdadeiro amor no final de tudo (“Escureceu demais e eu não vi você/ Eu só tenho um caminho/ E não vou sozinho/ Vou mudar meu rumo”). Nos primeiros jogos de atração do auge da Jovem Guarda e antes, Roberto seduzia de maneira pueril (com a exceção do namorado com síndrome de abstinência de “Por Isso Corro Demais”), através de sua arma mecânica sobre rodas, porém são nestas canções que surge a quintessência de seu romantismo. Algum tempo depois o melado entornaria, sem chances de limpeza posterior.

O cume do alto destino determinado pela presença da estrada e dos automóveis na lírica madura de Roberto Carlos parece se cristalizar na letra de “Proposta”: “Eu te proponho não dizer nada/ Seguirmos juntos a mesma estrada/ Que continua depois do amor”. Depois disto vieram as canções de volta à mulher amada, sempre em carros cada vez mais pesados e lentos (como caminhões ou táxis), num inequívoco retorno ao estilo de “o bom marido à casa torna”. Melhor teria sido ouvir música no vento das rodovias e o silvo dos motores de Cadillacs ecoando nas formações rochosas por todo o sempre.

[ Uma mini-biografia do Rei sobre rodas, publicado no extinto suplemento Mais! da Folha de S.Paulo em mil novecentos e antigamente ]

Nota
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São Paulo – 6 monumentos para um turismo masoquista

Certa vez um turista estrangeiro me perguntou qual era o animal típico de São Paulo, algum pássaro? Respondi: um quadrúpede, o automóvel. É comum aos que não são daqui retornarem a seus lugares de origem afirmando terem odiado São Paulo. Daí se torna obrigatório perguntar: mas qual São Paulo? Sim, pois não existe uma só, são inúmeras cidades em uma, quase todas incompreensíveis, muitas delas odiáveis. Maior cidade do hemisfério sul, com 20 milhões de habitantes, a Grande São Paulo hoje engloba 39 municípios, o que a torna a primeira macrometrópole a surgir no continente. Lotada de italianos, japoneses, africanos, árabes e judeus, ninguém  é daqui, embora não conheça outra vida. Também é comum se ouvir que a cidade é feia. Há controvérsias: melhor afirmar que se trata do único lugar que consegue extrair beleza da feiúra. Aqui o cinza às vezes adquire cores impensáveis, devido ao Sol filtrado pelos gases da poluição. Como um diamante surgido da pedra bruta e do concreto, São Paulo é multifacetada, tem 20 milhões de faces. Abaixo listamos alguns pontos da cidade a serem conhecidos ou evitados. Isso depende de você, turista masoquista, que, igual a São Paulo, não se parece com ninguém.

1. Elevado Costa e Silva.

Essa pista elevada de 3,4 quilômetros que une o centro à Zona Oeste, dista apenas 5 metros das janelas dos prédios vizinhos e é um exemplo de como São Paulo pode ser aprazível e hospitaleira. Construída em 1970 por Paulo Maluf, político de direita alinhado à Ditadura militar que governou o Brasil durante trinta anos, atualmente leva o cidadão do nada a lugar nenhum, pois a malha viária da cidade cresceu tanto que a área originalmente a ser desafogada (debaixo dela fica uma das avenidas mais tradicionais da cidade, a São João) é um detalhe ínfimo no inferno automobilístico. Aos domingos, o Minhocão (apelido dado pela população) é fechado aos carros, tornando-se monumento ao grafitti e zoológico humano de duplo viés, no qual pedestres observam a vida íntima dos habitantes da região pelas janelas enquanto são observados ao caminhar.

2. Praça Roosevelt.

Situada numa artéria viária central de São Paulo, a rua da Consolação, a Roosevelt decaiu de seu papel de pracinha de igreja no século 19 a labiríntico covil nos anos 90, utilizado por assaltantes e viciados em crack para se esconder. Com o crescimento acelerado da cidade nos anos 70, a praça em forma de pentágono se tornou uma ilha de concreto cercada de carros em movimento. De acordo com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, era “um bom exemplo do que nunca deve ser uma praça”. Sem árvores ou jardins, permanece atravessada por túneis subterrâneos. E pensar que a Roosevelt foi efervescente nos anos 60, cercada de teatros e boates (o primeiro cinema de arte da cidade ficava lá, o Bijou). Revitalizada na última década por grupos teatrais como Os Satyros e Parlapatões, a praça teve um ponto de giro em sua história: o dramaturgo Mário Bortolotto levou 4 tiros num assalto em 2009. Só assim para o poder público despertar. Em 2012 foi reinaugurada na véspera da eleição para prefeito, porém às pressas: não houve tempo para plantar as árvores.

3. Borba Gato.

Certamente o monumento mais horrendo do mundo, a estátua dedicada ao bandeirante Borba Gato é um acinte estético aos passantes, uma ofensa visual de 10 metros de altura. Construída nos anos 60 com a sucata dos trilhos dos bondes charmosos que ligavam a cidade no passado, a estátua homenageia os bandeirantes paulistas, sertanistas dos séculos 16 e 17 especializados em atividades amplamente homenageáveis: extermínio de escravos africanos rebeldes, captura de índios para escravizar, garimpo de pedras preciosas (daí, talvez, o fato de a estátua ser revestida com feias lascas de pedras coloridas de basalto e mármore). Um pesadelo frequente dos habitantes de São Paulo é o de que a estátua do Borba Gato cria vida e sai por aí feito a Medusa, ferindo olhares e transformando todos em pedra.

4. Edifício Copan.

Projetado parcialmente por Oscar Niemeyer em 1951 em vista da comemoração do quarto centenário da cidade, o edifício Copan é um marco da arquitetura moderna no centro antigo de São Paulo,  e igualmente uma experiência social. De início uma espécie de Rockfeller Center paulistano, seu status acompanhou a decadência do centro a partir da década de 70. Como o prédio tem apartamentos com três quartos e também quitinetes, estabeleceu-se verdadeira luta de classes no lugar, que por muito tempo foi o quartel-general de prostitutas e travestis da Boca do Lixo, área de boemia, bandidagem e produção de filmes pornô naquele período. No processo de higienização do Copan a partir dos anos 90 ganharam, como sempre, os ricos, e hoje o lugar abriga galeria de arte, café e restaurantes. Pobres, feliz ou infelizmente, não há mais.

5. Avenida Paulista.

A Paulista é o coração da cidade, uns dizem, e fico só imaginando a quantidade de pontes de safena que ela deve ter. Originalmente, no século 19, era região de fazendas de famílias quatrocentonas, como a do poeta modernista Oswald de Andrade. Hoje é o pulmão econômico de São Paulo, e quando ouço isto fico pensando num fumante subindo a escadaria de um prédio de 20 andares. De qualquer modo, é lá que tudo acontece, não só negócios. Cinemas, livrarias, lojas de roupas, centros culturais, de tudo há e muito. Desde 1997, também é a passarela da maior Parada Gay do mundo com 3 milhões de participantes, e não me atrevo a dizer a qual parte da anatomia a avenida Paulista corresponde nesse dia.

6. Ponte Estaiada.

O último grande cartão postal de São Paulo, uma cidade com 5 milhões de carros, só podia ser uma ponte. Desde sua inauguração em 2008, a Ponte Estaiada é, como seu nome suavemente indica, uma ponte suspensa através de cabos (ou “estais”, palavra pouco corrente, mais usada em navegação), que fica sobre a avenida Água Espraiada, cuja homofonia causa uma confusão dos diabos na vida dos forasteiros. Afinal, a confusão é parte fundamental da existência nessa descabeçada Babel sul-americana e diferente não poderia ser, já que seu padroeiro, o evangelista São Paulo, morreu decapitado.

[ Artigo publicado no dossiê dedicado ao Brasil da edição de janeiro da revista KulturAustausch, publicada em Berlim ]

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