(transcrevo abaixo respostas que dei em áudio a um repórter cuja pauta acabou caindo – aparentemente estas respostas contribuíram para isso acontecer)
Volta e meia vejo na timeline essa piada sobre o roteirista do Brasil estar maluco e tal. É curioso que isso seja tratado como uma piada, e uma piada que é levada a sério (a ponto de inspirar a divertida série Sala de Roteiro, do meu amigo Antônio Prata, que estreou esta semana). Outra expressão muito comum hoje, até banalizada, é “narrativa”: a narrativa disso, a narrativa daquilo. De fato, o Estado é voz determinante, a voz narrativa que determina o que é a realidade. Então, supondo que haja um roteiro, aquilo que o Estado dita poderia ser entendido como a voz protagonizadora daquilo que se entende como sendo Brasil, a Série? Se assim for, a narrativa ditada pelo Estado é das mais conformadoras daquilo que se entende por representativo de uma nação, de um país, de um Estado. Não tem nada de piada nisso. Essa narrativa tem construtores, tem protagonistas políticos, tem quem a escreva, portanto os roteiristas existem. Se pensarmos, por exemplo, no papel de Golbery do Couto e Silva como ideólogo da ditadura brasileira, como articulador dessa narrativa do Estado que está em primeiro plano e que oblitera, que esconde pontos importantíssimos de uma outra História que é excluída, que é deixada de lado, a gente pode entender que sim, há uma narrativa, há um roteiro, e infelizmente esse roteiro não tem muitas variações, na realidade essa piada não faz sentido nem enquanto piada, porque o essencial do roteiro, que é manter este país sobre os trilhos da dominação, do colonialismo, e que coloca em cena atores cujos papéis não mudam muito ao longo dos séculos, como o papel cumprido pela elite brasileira nessa história toda, nessa narrativa proposta pelo Estado, se você considerar assim, é uma história bastante óbvia, desautorizando a piada de que existe um roteirista maluco. Na realidade, o que está acontecendo é o óbvio, é uma narrativa que vem sendo contada pelo Estado há muito tempo, há quinhentos e vinte anos.
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Como leitor, não sou dos mais adeptos dos romances de trama, em geral são os mais pobres literariamente falando, como por exemplo a literatura de gênero, o policial britânico clássico dos anos 30, Sherlock Holmes, Agatha Christie, que são lidos sob a expectativa de resolução da trama, que tem aspectos de jogo, até lúdicos, mas bastante limitadores. Os grandes romances não têm trama, são decorrentes dos dilemas existenciais e morais dos personagens ou do narrador, quando se pensa na literatura moderna narrada na primeira pessoa. Portanto, se considerarmos que, isso no ambiente da ficção realista do século XIX, o protagonista se transforma ao longo do relato, começa de um jeito e termina de outro, eu diria que o personagem mais importante e o mais fracassado dessa narrativa do Brasil atual, ou do Brasil de sempre, é o povo. É um personagem de coro grego, múltiplo, um personagem multitudinário. E por que é o mais importante, ao menos potencialmente? Porque não se transforma, esse personagem Povo Brasileironasceu submisso, aparentemente, e vai morrer submisso, sem se rebelar diante das opressões, sem se rebelar diante da narrativa do Estado: ele não se transforma ao longo de Brasil, o Romance, portanto é o personagem mais importante, o provável protagonista, afinal quem sabe ele não nos surpreenda, pois o final ainda está um pouquinho longe de chegar. Então minha expectativa é a de que esse povo-bunda, o Povo Brasileiro, em algum momento deixe de ser assim e se transforme num povo-bíceps, um povo que saia dando porrada nos dominadores e resolva transformar este país numa nação digna do nome.
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Uma das teorias mais conhecidas da ficção é a da importância da história secreta. Todos conhecem a teoria do iceberg do Hemingway, que defende que apenas uma parte do relato, a correspondente ao pico, é mostrada, mas o que realmente move a essência da narrativa é a parte submersa, oculta. Ricardo Piglia inventou sua variação dessa teoria ao afirmar que um conto é sempre duas histórias, uma secreta e outra na superfície, e que o conto propriamente dito resulta do encontro da história secreta com a história visível. Com isso em mente, na História do Brasil tudo é secreto. Este nosso iceberg tropical tem partes enormes que correspondem àquilo que não é dito, partes obscuras, às quais nós, como espectadores e ao mesmo tempo vítimas, não temos acesso, não conhecemos. Ultimamente as revelações através dos vazamentos de áudios, de telefonemas grampeados, têm sido elemento importante dessa narrativa do Estado, que mantém a audiência alerta por meio da ilusão de que algo lhe é revelado dessa história secreta. No entanto, acredito que o que perdura verdadeiramente é a história secreta, da qual temos pouquíssimos dados reais e concretos, e na medida em que não a conhecemos, dificilmente poderemos ter uma noção clara daquilo que ocorre propriamente na narrativa, sobre aquilo que está acontecendo de verdade, e com isso não fazemos ideia do que pode vir a acontecer.
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Não consigo me entreter com Brasil, a Série, Brasil, a Narrativa, Brasil, a Piada, apenas me entristecer. Não me sinto dentro de uma obra de ficção, embora possamos apelar a uma porrada de conceitos, incluindo o budismo, de que vivemos sob um véu de ilusões, ou o Eclesiastes bíblico, nada de novo sob o sol, e que tudo faz parte de uma ilusão. Ou mesmo as ideias de William S. Burroughs, que considerava a consciência humana como uma base pré-gravada que se repete ad infinitum, em loop, que a realidade, portanto, também não passa de uma iloopsão. Considerando isso tudo, certamente vivemos numa obra de ficção, sendo que a consciência humana é a Grande Ficção a qual estamos presos. No entanto, esses episódios mesquinhos que correspondem à narrativa Brasil, o Romance, não me entretêm, apenas me entristecem. Por outro lado, quando assisto a uma série televisiva, por exemplo estou vendo agora Game of Thrones, que ainda não tinha visto, e sua trama rocambolesca, que é política na essência, a luta entre famílias, entre castas etc, e o povo ali embaixo no papel de capacho, escravizado, me entretenho, pois é uma corruptela, uma pobre tentativa de reproduzir o que acontece na realidade. Contudo, na medida em que percebemos os efeitos que a narrativa do Estado causa, e estão nas ruas todo dia (moro no centro de São Paulo, eu saio e vejo a população de rua aumentando dia a dia, é impossível andar dez metros sem ver pessoas implorando por comida); na medida em que acontece, não consigo perceber isso como uma ficção, e sim como a mais trágica realidade, à qual estamos presos e não parece existir plot twist ou final feliz que possa nos salvar.
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A narrativa realista do século XIX pressupunha que o protagonista passaria por um monte de perrengues ao longo da história, mas no final se daria bem. Então o Oliver Twist lá no Charles Dickens passa pelas piores situações, é órfão, sofre pra diacho, entretanto acaba bem posto, casado e feliz. O conde de Monte Cristo consegue escapar da masmorra e se vingar daqueles que o traíram e aprisionaram. O leitor que mergulhava numa narrativa do século XIX comprava o livro já sabendo que ficaria de boa, pois a história acabaria bem. Nesse sentido a narrativa realista não tem nada a ver com a realidade, já que a realidade não reserva final feliz a ninguém, na realidade todos morrem. Esse é o final costumeiro no plano da realidade, assim que a literatura realista nada tem de real, não corresponde à realidade. Portanto, sobre essa narrativa a que assistimos em Brasil, a Série, só temos a certeza de que o final será triste e infeliz, porque assim é a vida. Ou, caso consideremos que não estamos mesmo dentro de uma ficção, será um final feliz, já que o único final feliz, que faz parte de toda a existência, é justamente morrer, acabar, acaba uma geração, morre todo mundo, vem uma nova, morre todo mundo, e todo mundo vira poeira de estrela, alimentando este planeta, alimentando o Cosmos. O único final feliz para o Universo, e digo isso hoje que estou num dia particularmente otimista já que é segunda-feira, é a extinção da espécie humana. É o único final feliz possível para o Universo.