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Na véspera do natal passado

Na véspera do Natal passado, enquanto sucumbia à febre coletiva das compras atrasadas e destinadas não se sabe exatamente a quem, ele ficou preso àqueles olhos. Aconteceu numa faixa de pedestres da avenida Paulista. Ao aguardar o sinal abrir, um homem lhe estendeu a mão à espera de algo que não veio. O verde acendeu, a multidão afoita arrebentou e ele levitou sobre as duas pistas quase sem fazer força.

No entanto aqueles olhos o acompanharam até o final do dia, até abrir a porta da cozinha de casa e depositar os pacotes sobre a mesa. Sentou-se na poltrona da sala, esticou as pernas, mas na tela da tevê ou entre luzinhas da árvore de Natal os olhos piscavam, piscavam. Lembrou do rosto do homem: por seu mau estado, devia viver nas ruas. Encimando a pele curtida e escura, uns olhos brilhavam, simpáticos. A postura da mão não parecia de palma aberta ao céu, à espera de chuva ou moedas. Era a frontal mão estendida de um cumprimento.

Calçou os sapatos e voltou à rua. No ônibus, a primeira oração de uma reza se insinuou por sua mente, e ele a espantou como a uma mosca. Na mesma esquina, o homem não estava mais lá. Inconformado, seguiu à banca de jornal e comprou cigarros: quem sabe o homem fumasse, e seria bom motivo para início de conversa, embora isso nunca careça de motivo. Retornou ao local, o homem não apareceu. Acabou desistindo e voltando para casa. Na mesa da cozinha, os presentes tinham perdido qualquer hipótese de sentido.

Na manhã seguinte, largou os pacotes no lixo. Alguém os encontraria a tempo de ser feliz. De novo na esquina da noite anterior, nenhum sinal do homem, porém sua vontade não era tão molenga e frágil assim e ele deu voltas insistentes na quadra, e depois ampliou o diâmetro dessas voltas, orbitando ao redor das ruas, ao redor do bairro, atingindo o centro da cidade. Mas nada de achar quem procurava. Resolveu dormir numa pensão.

Outra manhã e a rotina se renovou, nem notícia do homem ou de seus olhos, e o giro em torno dos quarteirões, da zona central da cidade, do perímetro urbano, até se perder na periferia e não conseguir mais lembrar o endereço de sua própria casa. Desta vez adormeceu na rua. O tempo passou, os dias prosseguiram, e ele retornou a cada aurora, todas as tardes e noites ao mesmo endereço sem obter sucesso, até chegarem as vésperas de um novo Natal.

Nesta noite, sob as luzes brilhantes da Avenida Paulista, ele viu a si próprio refletido na enorme porta metálica de um banco e reconheceu aqueles olhos do Natal passado, uns olhos imensos de simpatia. De frente para a rua, naquela mesma esquina, ele reconheceu alguma outra coisa inconcebível nos rostos que atravessavam a faixa de pedestres, quem sabe a si mesmo multiplicado em todos eles, pois estendeu a mão ao primeiro homem repleto de pacotes vindo em sua direção, mas não estendeu a mão aberta de quem pede, e sim a mão que oferece um cumprimento.

[ JRT, 22/12/2012 ]

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