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Doze teses sobre a economia dos mortos, John Berger

1.

Os mortos arrodeam os vivos. Os vivos são o centro dos mortos. Nesse centro estão as dimensões de tempo e espaço. O que circunda o centro é atemporal.

2.

Entre o centro e os arredores há trocas, que normalmente não são claras. Todas as religiões se preocupam em esclarecê-las.

A credibilidade da religião depende da clareza de certas trocas incomuns. O mistério e a confusão de certas religiões são o resultado da tentativa de produzir sistematicamente esse tipo de intercâmbio.

3.

A excepcionalidade das trocas claras se deve à excepcionalidade do que pode atravessar intacta a fronteira entre a atemporalidade e o tempo.

4.

Ver os mortos como as pessoas concretas que eles já foram tende a enfraquecer sua natureza. Devemos tentar considerar os vivos como supomos que os mortos o fazem: coletivamente.

O coletivo não se acumularia apenas no espaço, mas também no tempo. Ele incluiria todos que já estiveram vivos. Assim, também poderíamos estar pensando nos mortos. Os vivos reduzem os mortos àqueles que viveram, enquanto os mortos já incluem os vivos em seu grande coletivo.

5.

Os mortos habitam um momento atemporal de construção constantemente recomposta. A construção é o estado do universo em qualquer momento.

6.

De acordo com sua memória da vida, os mortos conhecem o momento da construção também como um momento de colapso. Tendo vivido, os mortos nunca podem permanecer inertes.

7.

Se os mortos vivem em um momento atemporal, como podem se lembrar? Eles não se lembram de nada além de terem sido lançados no tempo, como tudo o que existiu ou existe.

8.

A diferença entre os mortos e os não nascidos é que os mortos têm essas lembranças. A medida que o número de mortos aumenta, a memória aumenta.

9.

A memória dos mortos que existe na intemporalidade deve ser pensada como uma forma de imaginação relativa a todo o possível. Essa imaginação está perto de (reside em) Deus, mas não sei como.

10.

No mundo dos vivos há um fenômeno equivalente e contrário. Às vezes os vivos experimentam a intemporalidade revelada num sonho, na extensão, em momentos de perigo extremo, no orgasmo e talvez na experiência da própria morte. Durante esses momentos, a imaginação dos vivos abrange todo o campo da experiência e ultrapassa os contornos da vida ou da morte individual. Ela toca a imaginação expectante dos mortos.

11.

Qual é a relação dos mortos com aquilo que aínda não aconteceu, com o futuro? Todo o futuro é a construção na qual se ocupa a sua ‘imaginação’.

12.

Como os vivos convivem com os mortos? Até a desumanização da sociedade pelo capitalismo, todos os vivos esperavam poder vivenciar os mortos. Em última análise, esse era o futuro deles. Por si só, os vivos eram incompletos. Portanto, os vivos e os mortos eram interdependentes. Sempre. Somente uma forma tão peculiar e moderna de egoísmo rompeu essa interdependência. Com resultados desastrosos para os vivos, que agora pensam nos mortos como os eliminados.

[1994]

Tradução de Joca Reiners Terron

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a f i c ç ã o v i d a

Avenida do Fauno

Imagine que o fauno esculpido por Brecheret, adormecido por décadas entre as ramagens do Parque Trianon, desperte nesta noite de aniversário da cidade. Depois de se espreguiçar, ele salta as grades e sai a passeio pela Paulista. O que irá ver?

Nada de arbustos para se resfolegar, isto é certo — a Mata Atlântica que ora existe é apenas a que ele recém deixou para trás, mínima e quase nenhuma — diante do Masp, confunde-se mesmo com um museu da natureza.

Mas há agora o que antes não havia, espelhos aonde se refletir. O fauno se verá multiplicado aos milhares nas vitrines esfumaçadas das portas cerradas de bancos e prédios enormes cujos nomes são siglas. Ele haverá de estranhar se ver somente a si no reflexo dos vidros, pois nunca existe ninguém no avesso interno dos edifícios desta avenida. Nem um só vulto que lhe acene. Ninfas nenhumas.

Fauno prestes a virar minotauro, nosso amigo agora se depara com monstros inéditos na mitologia, mas que abundam no mundão humano: seres diminutos de cabeças descomunais caminham em sua direção, as mãos abertas em cujas palmas viradas aos céus também nada se encontra, nem migalha nem níquel. Nem mesmo chuva escorre ali.

Então surgem outras bestas mitológicas: duelando com os carros, Fofão sopra suas bochechas cheias de vento e silicone vencido. Com efeitos especiais, sua tristeza convence os passantes, que lhe disparam vinténs com fúria. Agora silvam ao redor do fauno outros faunos com rodas, sobre skates e outros bichos desconhecidos que deslizam. Nosso amigo se anima a afinar os cascos nas largas esplanadas da avenida. Ele galopa. O dióxido de carbono levanta seus cabelos.

E daí, para os lados da Augusta, ele deixa de lamentar o sumiço dos casarões e seus jardins cheios de vaga-lumes. Hordas de sátiros e ninfas de mãos dadas vêm em sua direção. Estão felizes. Embora cercados por muros altíssimos iluminados por cifrões, eles gozam de estranha liberdade. Isto parece a Grécia antiga, o fauno pensa. Acaba de ver as luzes da Paulista. Ele nunca mais se resignará ao silêncio do Trianon.

[ Escrito faz muito tempo, em algum aniversário passado de São Paulo, que hoje faz 470 anos, em algum momento mais otimista. Nesse ínterim entre o texto e hoje, a cidade mudou muito, abandonada que foi pelos últimos três prefeitos. Nunca foi tão cinzenta – e olha que sou daqueles que vêem beleza no cinzento –, triste e perigosa. Eu nunca quis sair de SP, coisa que sempre diagnostiquei como síndrome típica de paulistano da gema – o ímpeto de cair fora e viver no mato ou na praia –, mas ando sentindo isso. Terei me tornado um paulistano típico, depois de 29 anos na cidade? Não sei. Só sei que esse sentimento deve ser substituído por seu contrário, o desejo de ocupar praças e ruas, de ficar, de cuidar, de preservar e amar o lugar onde se vive. O desejo de refrear o dinamismo dessa cidade, que às vezes se confunde com pulsão de morte e destruição – de si mesma. Feliz aniversário, SP. ]

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A questão da verossimilhança

(Texto publicado originalmente em 29 de outubro de 2013 — há dez anos, portanto — no blogue da Companhia das Letras).

Temos no Brasil um clichê contemporâneo que afirma que a arte produzida pelos argentinos é melhor que a nossa. Os filmes deles são sempre mais competentes, e feitos com menos dinheiro. A literatura, desde sempre, foi melhor. Eles têm Borges, Cortázar e nenhum romance brasileiro dos últimos cinquenta anos chega aos calcanhares de Respiração Artificial, de Ricardo Piglia. Mas existe um equívoco nessa comparação. Para que seja coerente, é necessário que a busca de equivalência se utilize do que eles têm de melhor, porém nós também. Os argentinos sabem fazer filmes e livros. E nós sabemos fazer armas de fogo.

Foi muito difundida recentemente a imagem acima, na qual um garoto mostra a procedência da bomba de gás lacrimogêneo lançada pela polícia turca contra um acampamento sírio. Talvez menos conhecido seja o fato de que atualmente o cidadão norte-americano — pródigo em exercer seu direito de legítima defesa — é o maior comprador de armamento produzido no Brasil. Nos últimos 10 anos, a indústria brasileira do armamento vendeu mais de 5 milhões de armas para o mercado dos EUA. De acordo com esta matéria da Folha, é número suficiente “para armar a população inteira de países como Noruega e Croácia”. Nossos vizinhos também são bons fregueses. Enquanto produziam filmes e livros melhores que os nossos, no mesmo período os argentinos compraram 215 mil de nossas excelentes armas.

Corta para a noite de ontem.

Ontem à noite, depois de voltar de uma viagem ao exterior que durou um mês e que incluiu minha participação como integrante da delegação brasileira na Feira de Frankfurt na qual o Brasil foi homenageado, bem, ontem à noite eu recebi um telefonema a cobrar. Como sempre nessas ocasiões, atendi imaginando que fosse minha filha de 14 anos, pois só ela liga aqui em casa a cobrar. Esse fato contribuiu para a questão da verossimilhança, e era realmente ela ao telefone, aos prantos, dizendo que havia sido sequestrada, espancada e que estava nas mãos dos sequestradores. Eu pedi que se acalmasse e daí surgiu ao fone a voz de um homem com o registro linguístico típico da criminalidade, exigindo dinheiro para libertá-la. Eu já ouvira falar desse tipo de golpe, mesmo assim o impacto foi grande. Fiquei a mercê do sujeito, por um motivo simples: minha filha vive em outra cidade, a mil quilômetros de mim, e antes de mandar o bandido àquele lugar eu precisava confirmar se ela estava bem. Isso levou uma hora e meia, uma hora e meia de puro terror.

Corta para vinte dias atrás.

Vinte dias atrás eu atravessava à noite um bosque de Berlim. Era um lugar absolutamente ermo que eu precisava atravessar para chegar ao hotel onde estava, único lugar que obtive para me hospedar durante o feriado da unificação alemã, pois a cidade estava cheia. Ao me enfiar naquela escuridão fui tomado pelo pavor. O que eu fazia ali naquele lugar? Podia ser assaltado, sequestrado e morto. Mas nada disso aconteceu, e durante minha estada na cidade eu atravessei aquele bosque e outros lugares ainda mais escuros, sempre com medo. Aparentemente, investir em segurança permite ao Estado alemão que economize em iluminação pública. Berlim é uma cidade bastante escura.

Corta para dez dias atrás.

Outra notícia que repercutiu ultimamente foi o discurso de abertura feito por Luiz Rufatto em Frankfurt. Trechos de sua fala afirmavam que “nascemos sob a égide do genocídio” e que “a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.” Em minha participação no pavilhão brasileiro, ao lado de Sérgio Sant’Anna, recordei minha sensação de temor ao atravessar o bosque de Berlim, concluindo que nós, brasileiros, carregamos uma variação ainda mais perversa de trauma de guerra do que aquele sofrido por militares. Nós somos civis. Supostamente — é o que nos fazem crer —, não estamos em guerra. Podemos não praticar a violência, porém a violência não nos abandona. É traço indelével de nosso caráter. É o que temos de melhor? Pois até a exportamos, e o governo brasileiro fornece generosos subsídios fiscais para isso, assim como recebe apoio financeiro da indústria armamentista para suas campanhas políticas.

Corta para ontem à noite.

Levei uma hora e meia para localizar minha filha e descobrir que ela estava bem, na casa de sua mãe. Durante esse tempo, muita bobagem passou pela minha cabeça. Lembrei, por exemplo, que era eu o ficcionista ali, além disso um paranoico. Devia ser minha obrigação prever quais os passos seguintes daquela pantomima cruel. Mas a verossimilhança dos dados sobre minha filha que me eram fornecidos me derrubou. Acostumado ao pânico, ao ouvir aquela voz de alguém que fingia ser minha filha implorando por socorro, meu cérebro imediatamente codificou a voz — que devia ser a de um prisioneiro qualquer com talento interpretativo à altura de grandes atrizes argentinas — na voz de minha filha. Simplesmente porque era perfeitamente verossímil que aquilo estivesse acontecendo. Por sorte, minha mulher — que foi mantida o tempo todo no outro telefone — conseguiu se comunicar com um amigo, que localizou minha filha. Estava em casa. Soube disso a tempo de não cumprir as exigências dos bandidos. Tudo acabou bem?

Corta para a questão da verossimilhança.

Rufatto foi simultaneamente aplaudido e execrado, em sua tentativa de elucidar a plateia de Frankfurt acerca das contradições que nos conformam. Que nos deformam. Evidentemente, foi execrado por gente que não suporta se ver no espelho, e que não admite a má procedência do que oferecemos ou as reais patologias psíquicas e espirituais que sofremos enquanto cidadãos violentos, criados sob violência em uma nação violenta. Isso é o que somos, nossa matéria-prima. O que fazemos de melhor.

Corta para o futuro, circa 2050.

Andei lendo 10 Billion, um panfleto apocalíptico de Stephen Emmett, cientista de Cambridge que estuda os efeitos da hiperpopulação e do desgaste natural provocado pela agricultura e pela indústria no planeta e como isso refletirá daqui a algumas décadas, quando atingirmos a cifra de 10 bilhões de habitantes. É assustador, quase tão atemorizante quanto pode ser a um traumatizado pela violência atravessar bosques tranquilos de países civilizados na escuridão. Em diversas passagens do livro, minha mente paranoica deduziu que Emmett sugere que o Brasil — “o celeiro do mundo?” — pode perfeitamente ser palco de uma guerra mundial por comida. Pois isso, comida, vai ser artigo raro em 2050.

Corta para o momento de agora.

Lá pelas tantas, Emmett resolve perguntar ao seu assistente mais brilhante qual seria sua providência a fim de preparar seu filho para o futuro. A resposta do jovem cientista o surpreendeu: “Ensiná-lo a usar uma arma.”

Nossa providência, porém, é ligeiramente mais complicada. Precisamos ensinar nossos filhos a ler, e a ler livros que reproduzam nossa verdadeira essência de povo regido pela violência. Não vejo aspiração maior para nossa literatura atual do que a de refletir nosso verdadeiro caráter. Enquanto isso, precisamos ensinar nossos filhos a usar uma arma.

*

PS. Peço aos leitores que relevem o possível elogio da legítima defesa deste texto. Sou contra o uso de armas e abomino a violência. A coluna, porém, está sujeita aos humores de seu autor, e hoje é, pelos motivos expostos, daqueles dias em que me permito um hipotético “e se”?

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Depois de Lorca, de Jack Spicer

Querido Lorca,

    Quando traduzo um dos seus poemas e encontro palavras que não entendo, sempre adivinho seus significados. E acerto, sem erro. Um poema realmente perfeito (ninguém ainda escreveu uma porra dessas) poderia ser perfeitamente traduzido por uma pessoa que não conheça uma só palavra da língua em que foi escrito. Um poema realmente perfeito tem um vocabulário infinitamente pequeno.

    É difícil pacas. Queremos transferir o objeto imediato, a emoção imediata para o poema — e mesmo assim o imediato sempre tem centenas de palavras próprias agarradas a ele, curtas e tenazes como cracas. E é errado raspá-las e substituí-las por outras. Um poeta é um mecânico do tempo, não um embalsamador. As palavras ao redor do imediato murcham e apodrecem como a carne ao redor do corpo. Nenhum trapo de múmia da tradição pode ser usado para interromper o processo. Objetos, palavras, devem ser conduzidas através do tempo e não preservadas contra ele.

    Eu grito “Merda” da beira de um penhasco no oceano. Mesmo na minha vida, o imediatismo dessa palavra desaparecerá. Será morto como “Alas”. Mas se eu colocar o penhasco real e o oceano real no poema, a palavra “Merda” os acompanhará, viajará na máquina do tempo até que os penhascos e oceanos desapareçam.

    A maioria dos meus amigos gosta muito de palavras. Eles as arranjam sob a luz ofuscante do poema e tentam extrair de cada uma delas todas as conotações possíveis, todos os trocadilhos de ocasião, todas as conexões diretas ou indiretas — como se uma palavra pudesse se tornar um objeto pela mera adição de consequências. Outros pegam palavras das ruas, dos bares, dos escritórios e as exibem orgulhosamente nos seus poemas como se estivessem gritando: “Veja o que colhi da língua americana. Olhe para minhas borboletas, meus selos, meus sapatos velhos!” O que fazer com essa porcariada toda?

    As palavras são o que adere ao real. Nós as usamos para empurrar o real, para arrastar o real para dentro do poema. Elas são aquilo que mantemos, nada mais. São tão valiosas em si mesmas quanto uma corda sem nada para ser amarrado.

    Repito — o poema perfeito tem um vocabulário infinitamente pequeno.

Com amor,

Jack (ou Joca)

(Tradução JRT)

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A última página

“Wilde: Temo pela voz.

Joyce: Tá querendo dizer o quê?

Wilde: Pra onde vai a literatura. Logo a voz vai se perder, e vai sobrar o que pra gente?

Joyce: Páginas.

Wilde: E a trama?

Joyce: O que é a trama, no fim das contas? Não passa de uma forma de anunciar a última página.

Wilde: Já saiu alguma vez pra caminhar no meio de uma tempestade elétrica carregando um tubo metálico daqueles bem compridos?

Joyce: Não.

Wilde: Devia experimentar.

Joyce: Tá chateado?

Wilde: Não, só estou anunciando a última página.”

[ Trecho do romance Erasure (2001), de Percival Everett. Tradução JRT ]

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a s p a s

Conversa com um autor humano

Em janeiro de 2023 o escritor J.P. Cuenca publicou o resultado da escrita em progresso de um romance com auxílio da Inteligência Artificial ChatGPT. No mesmo período, fiz algumas perguntas para a IA e o resultado foi publicado no suplemento Ilustríssima da Folha de S.Paulo. Infelizmente, por questão de espaço, as respostas às perguntas que fiz a Cuenca não entraram no artigo. Publico-as aqui em agradecimento por sua disponibilidade e também como registro de sua percepção acerca da interação com a IA. 

1. Quais os limites que você percebeu na interação?

O principal limite é a timidez. Para escrever ficção e tomar decisões concretas sobre o texto que estamos escrevendo, a ChatGPT é profundamente modesta. Ela fica tirando o corpo (!) fora o tempo inteiro. É preciso insistir e, às vezes de forma meio oblíqua, obrigá-la a criar desavergonhadamente. O papel para o qual ela foi treinada é mais de consultoria que de criação. Mas até esse caráter, a depender da história, pode ser um charme. Na ficção que estou produzindo com ela, esse embate fica claro. 

2. Essa AI pode substituir um escritor humano? Se sim, que tipo de escritor?

Com certeza. Com o treinamento e tempo devidos, a IA poderá substituir boa parte dos escritores humanos. Os carreiristas que escrevem textos baseados em demandas do mercado editorial, seguem igrejinhas teóricas ou produzem panfletos que seguem as altas de capital simbólico poderão ser, em breve, totalmente substituídos por máquinas. Scouts, agentes e editores alimentarão, em algum subsolo de Frankfurt, bancos de dados e algorítmos para criar as próximas sensações globais, livros que no prelo já tem edições vendidas para dúzias de países etc. Do meu ponto de vista, não vai fazer nenhuma diferença. Ou talvez esses textos sejam até menos robóticos e mais inspirados do que boa parte dessa produção atual. De qualquer forma, meu objetivo ao jogar com a IA é outro: mais um experimento para entortar novos procedimentos que a busca de qualquer tipo de adequação mercadológica, mais o ruído que o gosto comum.

3. Mas você se sentiu à vontade servindo de cobaia, ou ensinando, uma AI que posteriormente será monetizada?

Eu não me sinto à vontade nem dormindo… Mas meu interesse em experimentar esse tipo de ferramenta é maior que qualquer desconforto, certamente. Em comparação com as demais formas de arte, a criação literária tem uma relação bastante diferente com a inovação tecnológica. Nós basicamente escrevemos da mesma forma desde a antiguidade. O computador, com a capacidade de corrigir erros com o backspace, tem algo semelhante ao fluxo da escrita no papel e suas rasuras. Como certa vez disse o Piglia, acredito que o gravador de voz tenha sido a ferramenta que mais impactou as formas literárias, mais que a máquina de escrever ou processadores de texto. Porque nos deu a capacidade de reter certas vozes e mimetizá-las como nunca antes em escrita. De qualquer forma, ferramentas como a ChatGPT podem roubar rapidamente esse lugar… É um troço altamente perturbador e com potencial revolucionário

//

Também perguntei à ChatGPT sobre a experiência com J.P. Cuenca, e ela respondeu o seguinte:

“Quanto à ficção desenvolvida com J.P. Cuenca, ela foi criada com o objetivo de explorar as possibilidades e limitações da inteligência artificial na narrativa e foi recebida positivamente pela crítica. No entanto, a qualidade é subjetiva e pode variar de acordo com o gosto de cada leitor.”

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Cinco ou seis coisas que eu aprendi com o Joca — e outras que aprendi escrevendo –

por Marcílio Godoi

(Ao amigo Joca Reiners Terron)

Que na escrita os problemas são um conforto, e que as certezas simplificam perigosamente as coisas;

Que alguns filósofos sofrem de perda de problemas, e que outros padecem de excessivo ganho de poesia;

Que as áreas de sombras também são boas de se enxergar, e que sob a neblina é que se encontram os melhores poemas;

Que nós desprezamos muito o valor estilístico de nossos defeitos, e que grandiosas obras decorrem de uma obsessão doentia;

Que toda arte começa a partir de um erro, e que é preciso falhar sempre, cada vez melhor;

Que o monólogo interior, indireto, livre, é um jeito de não se deixar colonizar, e que escrever é um modo de forçar a liberdade que há em não saber;

Que não ter nada a pintar e nada com que pintar pode ser o desejo, e que escrever sem literatura pode ser uma elevada forma de arte;

Que um poema é um objeto no mundo procurando seu lugar, e que pressionar a linguagem pode resultar apenas em publicidade;

Que os heróis perseguem honra, glória e pátria, mas sempre alcançam tragédias, e que palavras perdendo sentido podem ser um sinal de começo;

Que a linguagem é um campo de batalha com acelerador de partículas,e que é preciso entender o ritmo da pergunta, mais do que a resposta;

Que são nossas limitações que nos autorizam a falar, e que é preciso não desperdiçar muito tempo com o que já foi dito;

Que alguns escritores propõem enigmas e te dão a chave, e que outros propõem também, mas jogam a chave fora e ainda se riem de nosso desespero;

Que o cinema e o teatro meditam sobre o instante de agora-agora, mas que a literatura, mesmo quando fala do futuro, parece falar de ontem;

Que parar pra revisar interrompe o fluxo da nossa ideia, e que isso pode fazer a gente esquecer do que escrevia;

Que o romance nasceu como uma pretensão burguesa de reproduzir o mundo, e que um verdadeiro autor só pode estar a serviço de si mesmo, de mais ninguém;

Que autonomia é rompimento, ruptura, insubordinação, e que o leitor responde pela existência da metade do que vai escrito;

Que toda vez que na escrita somamos um adjetivo a substantivo, a chance de produzirmos um clichê é de quase cem por cento;

Que é preciso saber exatamente onde fica no texto “aquele agora de então”, e que devaneios oníricos se desdobram onde a realidade não tem plano;

Que é preciso derrubar o paradigma da verossimilhança, e que o excesso de fatos podem diametralmente derrubar nossa imaginação;

Que é preciso se desapegar de toda e qualquer pesquisa feita, e que romance nenhum é uma tese;

Que quando a personagem dorme e sonha, o leitor aproveita esse momento para abandonar o livro, e que um autor só tem o direito de usar um ponto de exclamação a cada 300 páginas;

Que a mancha gráfica do texto é parte da sua leitura, e que “voz” nunca é o escritor falando;

Que é preciso escrever sem superego, sem juiz, sem cabresto,e que temos de revisar nosso texto como nosso maior inimigo faria. Pois ele o fará;

Que toda literatura tem de aspirar a uma linguagem cósmica, e que mesmo que estejamos falando sobre as formigas, há de haver ali uma formigonia;

Que o tempo é uma fantasia artificial que nos ensinaram, e que isso nos afastou por completo do nosso diálogo com a natureza;

Que a emoção é tudo que dá a consciência do espaço, da memória, das relações, e que a única forma de lidar com o tempo é através do sentimento;

Que os diálogos existem para dizer aquilo que não fica tão bem um narrador dizer, e que é preciso plantar sempre uma forma de angústia no leitor;

Que o assassino tem de ser uma personagem importante, senão o leitor vai se sentir traído, e que metade da arte narrativa está em não explicar nada;

Que não contar uma história especificamente pode ser uma ótima forma de contar uma história, e que ser econômico verbalmente e contido psicologicamente pode ser grandioso;

Que narrar o sexo de uma maneira abstrata sempre perde para o hiperclose, e que quando amantes se conhecem de verdade, uma língua particular ali se funda;

Que quem escreve um poema só o faz porque não consegue ficar em silêncio, e que o romance é uma forma estilística omnívora, ou seja, um bicho que come de tudo;

Não relate o seu café da manhã se você não se chamar Marcel Proust.

Não arremede a fala do povo se seu nome não for João Guimarães Rosa.

[ Marcílio Godoi, excelente escritor que está prestes a estrear como romancista, foi meu aluno, e escreveu esse belo poema a partir de suas notas feitas ao longo das aulas. ]

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Meu primeiro romance, vinte anos depois

Quando escrevi meu primeiro romance, Não há nada lá, eu era outra pessoa. Tinha por volta de trinta anos (passei dois anos escrevendo-o), minha filha ainda era uma bolota risonha e babona de cabelos encaracolados e não mais de sessenta centímetros de altura; eu ia então de carro todo dia ao trabalho. Era o feliz beneficiário de um plano de saúde graças àquele emprego, duas vantagens que não duraram muito logo que comecei a escrever o livro.

Meu primeiro romance causou minha demissão. Por algum tempo, enquanto o texto não engrenava, eu conseguia disfarçar que escrevia durante o expediente. Mas depois, quando não era mais possível pensar em outro assunto, a bandeira tremulou, altaneira. Um dia meu chefe sugeriu que fosse terminar o livro em casa. Não tive alternativa senão aceitar. Assim, a ficção terminou por afetar gravemente minha realidade.

Usei parte da multa rescisória para pagar a impressão do livro. Publiquei-o através de minha própria editora mambembe, a Ciência do Acidente. No dia da entrega da gráfica, o produtor me explicou que a quebra da tiragem havia sido um pouco acima dos 3% usuais, e os quinhentos exemplares da primeira edição viraram quatrocentos e treze. Assim mesmo, eu nunca tinha sido tão feliz. Admirava aquelas quatrocentos e treze capas azuis esparramadas na sala de casa e não sabia se ria ou chorava.

O lançamento foi em março de 2001 num Bar Balcão repleto de ex-colegas da antiga firma. Até o chefe que me demitiu estava lá: levara junto o Ignácio de Loyola Brandão, que era seu amigo. Muita coisa aconteceu comigo e ao Não há nada lá depois daquela noite. Eu, por exemplo, participei de uma associação de pequenos editores. Em nossas feiras brincava que aquilo parecia reunião dos Alcoólicos Anônimos: “Oi, meu nome é Fulano de Tal, sou editor e não vendo um livro há dois anos, cinco meses e três dias”. Não que hoje eu seja um Paulo Coelho, claro. Mas muito longe disso.

O romance recebeu boas críticas de uns caras bacanas que nem eram meus amigos e praticamente esgotou tempos depois; “praticamente” significa que sobraram trinta e dois exemplares devidamente guardados debaixo de minha cama, pois imaginava que o livro nunca mais seria impresso. Conforme os exemplares minguavam, meus cabelos caíam. Engordei. Fui feliz, fui triste, fui feliz de novo: ainda sou, mais ou menos (minha filha, agora adolescente, já não me dá a menor pelota). Depois, umas três ou quatro teses citaram o Não há nada lá, que continuou sem muita perspectiva de voltar a existir. E o tempo passou.

Dez anos se passaram. Publiquei outros livros no período e eis que agora, numa inexplicável manobra da literatura, essa ciência do mais puro acaso, o Não há nada lá está de volta. Quem poderia dizer que a redenção viria por meio de Más Companhias? Já não nos tratamos mais por “você”, eu e o livro, pois nossa intimidade diminuiu com o passar dos dias. Também não sei mais quem foi que o escreveu, quais eram seus interesses etc. Lembro vagamente, porém, que aquela foi uma época cheia de incertezas, e que muito do espírito de fin de siècle impregna suas páginas fugidias: o fim do mundo, o fim do livro, o fim do emprego.

Hoje é possível verificar que eu estava certo ao menos em relação ao fim do emprego: nunca mais tive carteira assinada. É engraçado: conforme a gente envelhece vai percebendo que pode aprender a fazer de tudo, e a fazer bem: se eu chegar aos noventa anos poderei até mesmo ser um campeão internacional de sinuca ou, quem sabe, de bocha. Só uma coisa não dá pra recuperar: o fervor da juventude, e a crença absoluta naquilo que está sendo feito. E às vezes, quando se acredita de verdade, acabamos nos tornando meio geniais. Nem que seja um pouquinho.

[Publicado originalmente em 27 setembro 2011 no blogue da Companhia das Letras, na véspera do lançamento da segunda edição, que ocorreu na Livraria da Vila – Rua Fradique Coutinho, 915, num bate-papo com o editor André Conti. ]

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