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Na véspera do natal passado

Na véspera do Natal passado, enquanto sucumbia à febre coletiva das compras atrasadas e destinadas não se sabe exatamente a quem, ele ficou preso àqueles olhos. Aconteceu numa faixa de pedestres da avenida Paulista. Ao aguardar o sinal abrir, um homem lhe estendeu a mão à espera de algo que não veio. O verde acendeu, a multidão afoita arrebentou e ele levitou sobre as duas pistas quase sem fazer força.

No entanto aqueles olhos o acompanharam até o final do dia, até abrir a porta da cozinha de casa e depositar os pacotes sobre a mesa. Sentou-se na poltrona da sala, esticou as pernas, mas na tela da tevê ou entre luzinhas da árvore de Natal os olhos piscavam, piscavam. Lembrou do rosto do homem: por seu mau estado, devia viver nas ruas. Encimando a pele curtida e escura, uns olhos brilhavam, simpáticos. A postura da mão não parecia de palma aberta ao céu, à espera de chuva ou moedas. Era a frontal mão estendida de um cumprimento.

Calçou os sapatos e voltou à rua. No ônibus, a primeira oração de uma reza se insinuou por sua mente, e ele a espantou como a uma mosca. Na mesma esquina, o homem não estava mais lá. Inconformado, seguiu à banca de jornal e comprou cigarros: quem sabe o homem fumasse, e seria bom motivo para início de conversa, embora isso nunca careça de motivo. Retornou ao local, o homem não apareceu. Acabou desistindo e voltando para casa. Na mesa da cozinha, os presentes tinham perdido qualquer hipótese de sentido.

Na manhã seguinte, largou os pacotes no lixo. Alguém os encontraria a tempo de ser feliz. De novo na esquina da noite anterior, nenhum sinal do homem, porém sua vontade não era tão molenga e frágil assim e ele deu voltas insistentes na quadra, e depois ampliou o diâmetro dessas voltas, orbitando ao redor das ruas, ao redor do bairro, atingindo o centro da cidade. Mas nada de achar quem procurava. Resolveu dormir numa pensão.

Outra manhã e a rotina se renovou, nem notícia do homem ou de seus olhos, e o giro em torno dos quarteirões, da zona central da cidade, do perímetro urbano, até se perder na periferia e não conseguir mais lembrar o endereço de sua própria casa. Desta vez adormeceu na rua. O tempo passou, os dias prosseguiram, e ele retornou a cada aurora, todas as tardes e noites ao mesmo endereço sem obter sucesso, até chegarem as vésperas de um novo Natal.

Nesta noite, sob as luzes brilhantes da Avenida Paulista, ele viu a si próprio refletido na enorme porta metálica de um banco e reconheceu aqueles olhos do Natal passado, uns olhos imensos de simpatia. De frente para a rua, naquela mesma esquina, ele reconheceu alguma outra coisa inconcebível nos rostos que atravessavam a faixa de pedestres, quem sabe a si mesmo multiplicado em todos eles, pois estendeu a mão ao primeiro homem repleto de pacotes vindo em sua direção, mas não estendeu a mão aberta de quem pede, e sim a mão que oferece um cumprimento.

[ JRT, 22/12/2012 ]

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Os descaminhos siderais da literatura

Uma sonda chamada Tor I carrega através do espaço sideral, entre canções dos Beatles, a nona sinfonia de Beethoven, uma versão em inglês de Michel Teló intitulada OH, IF I CATCH YA, também um livro tradicional, feito de papel, e um leitor de livros eletrônicos. Tudo isso serve para que, no caso de uma civilização alienígena existir e interceptar a sonda no infinito e além, saiba de nosso legado. Das muitas coisas maravilhosas que os seres humanos deixaram para o universo. De nossa inteligência. Em meio aos vários textos que o livro em papel e o leitor de livros eletrônicos no interior da sonda espacial compilam está um romance que ainda estou escrevendo e que se tornará muito famoso no futuro, pois será alvo de um processo bilionário que perderei. A história do romance trata do cachorrinho morto que mora em cima da cabeça de Eike Batista. Já repararam no cachorrinho morto que mora lá em cima da cabeça do Eike Batista? Tem gente que finge não reparar, mas eu o percebi. Pois bem, nessa história o cachorrinho morto que vive em cima da cabeça do Eike Batista não está exatamente morto, e sua consciência malévola domina por completo o Eike Batista, que, como todos sabem, é o dono do mundo. E daí o cachorrinho morto em cima da cabeça do Eike Batista ordena que ele promova as maiores bandalheiras políticas e econômicas, como implantações de torradeiras elétricas gigantes em áreas de preservação ambiental, prospecção petrolífera nas piscininhas plásticas com bolinhas da criançada, indústrias de bombons transgênicos, e, entre outras barbaridades, o uso da polícia militar na expulsão dos melômanos, viciados em música erudita, do centro da cidade; e, como todos sabem, a Melolândia da região da Luz é um caso de saúde pública, não de polícia. Como já deu para perceber, o cachorrinho morto que vive em cima da cabeça do Eike Batista é o AntiCristo, o Eike é o seu cavalo e a partir daí começa o fim do mundo. E mais não conto, pois ainda estou escrevendo essa história. Mas não era disso que eu ia falar. Eu ia falar do momento em que os alienígenas encontram a sonda enviada ao espaço pelos cientistas pagos pelo cachorrinho morto que vive em cima da cabeça do Eike Batista. Depois de dançarem muito ao som de Michel Teló, eles localizam dentro da sonda o livro em papel e o leitor de livros eletrônicos. Pois bem, após demonstrarem algum espanto diante de tecnologia tão atrasada, os aliens começam a pensar no que farão para decodificar a informação que aqueles objetos trazem. O livro em papel está em inglês, então a primeira coisa que fazem é decifrar aquele grunhido bárbaro no qual o livro está escrito. Isso lhes ocupa algum tempo, pois a sociedade alienígena está imersa em morosa burocracia feita para restringir o acesso de funcionários públicos a jogos de entretenimento, ainda mais acesso a jogos de entretenimento — e a grande literatura também é isto — que possam transformá-los, que lhes ensinem algo (embora os aliens ainda não saibam que aquele maço de papel seja um livro e até mesmo que o papel seja papel, e que para fazê-lo era necessário derrubar árvores no planeta Terra, pois eles também não sabem lá o que era uma árvore e muito menos conhecem o planeta Terra, já que no planeta deles não existem árvores e no nosso também não, já que a história se passa num futuro não muito distante daqui quando este planeta Terra de agora já tiver ido pras cucuias e consequentemente as árvores também e por aí vai). Pois bem, eis que afinal os aliens decifram a língua inglesa e então passam meses, quem sabe anos e séculos, para entender todo o contexto e circunstância na qual ocorre a primeira história do livro que lêem. Para ler e entender “Crime e castigo”, por exemplo, eles precisam descobrir o que exatamente é um usurário, o que é uma dívida financeira, o que é o sistema capitalista, o que é uma velhinha russa, o que é um machado, o que é um assassino e, mais difícil ainda, já que são imortais, o que é a morte. Depois que mais ou menos entendem as agruras pelas quais Raskolnikov passou e o que ele aprontou à pobrezinha da anciã e como termina “Crime e castigo”, os aliens acabam se divertindo muito com a obra-prima de Dostoiévski e aprendendo alguma coisa sobre a miséria da existência humana no extinto planeta Terra. Nesse instante, os aliens começam a intuir o que é e para que serve a literatura. Contudo, quando deixam de rir, lembram que precisam decifrar como funciona o leitor de livros eletrônicos. Eles então pegam o Kindle ou o Ipad ou o Kobo ou quaisquer que seja a traquitana enviada no interior da sonda espacial, apertam o botão e percebem que está descarregada. Simplesmente não funciona. Furiosos e também curiosos, os aliens realizam pesquisas para entender qual é o tipo de energia utilizada para o funcionamento daquele estranho e arcaico aparelho. Sim, pois para usá-lo teriam de recriar todo o contexto tecnológico que permitiu à civilização que o inventou inventá-lo. Com isso, os aliens — cuja história científica é, muito provavelmente, diferente da nossa —, para atingir o conhecimento que conduziu a humanidade ao leitor de livros eletrônicos, deveriam passar por tudo o que passamos sem queimar etapas, desde a antiguidade, sendo atingidos por relâmpagos enquanto empinam papagaios do mesmo modo que Benjamin Franklin e queimarem um milhão de lâmpadas assim como Thomas Alva Edison queimou (aqui cabe uma anedota particular: quando criança nos anos 70, sempre imaginei que Tomás Alva Edison, o pai da lâmpada elétrica e do fonógrafo, era brasileiro; isto se devia, claro, ao fato de o brasileiro mais popular daquela época também se chamar Edson, Edson Arantes do Nascimento, o nosso Pelé, verdadeiro inventor do futebol). É aqui, entrementes, enquanto os aliens pesquisam, que se torna necessário um parêntese histórico para falar a respeito da literatura e seus descaminhos, siderais ou não. Desde que surgiu, cuspida à volta de alguma fogueira pré-histórica, e depois entre gregos e troianos, a literatura foi propagada ao longo do tempo através do ensinamento de mestres, de homens que a perpetuavam como um ofício artístico, ensinando as regras da arte. Esse processo durou entre dois e três mil anos. Entrementes, não havia risco nessa alternância, pois a arte era um conhecimento comum a todos, uma prática social, e não havia zonas escuras a serem exploradas ou mitos a serem combatidos. Tornar-se artista era o resultado culminante de um processo pedagógico, mais ou menos como se opera com parte de vocês aqui, que vieram à faculdade para aprender a ser jornalistas e, se contarem com a sorte, e vão necessitar de muita, serão jornalistas. Então, ser artista era pertencer a uma classe profissional como outra qualquer, com suas regulamentações e benefícios. Um poeta da Idade Moderna, por exemplo, podia ser contratado para compor um soneto de circunstância em homenagem ao aniversário de quinze anos da filha caçula da condessa de Sicranópolis. É bem conhecido o papel dos mecenas durante o Renascimento, que encomendavam a artistas quadros que registrassem efemérides familiares ou históricas, em geral exageradas ou falsas. Então e depois, até o século 20, a função social da arte era bastante clara. Em “Fuga sem fim”, um romance de 1927 de Joseph Roth, há um trecho que ironiza esse papel “pedagógico”: “Na guerra, descuida-se da educação. As moças de todos os níveis sociais aprendem, às expensas de versos iâmbicos, o cuidado dos enfermos, o heroísmo e detalhes da guerra.” Em fins do século 19 a literatura atingiu seu cume profissional, por meio dos romances de Dickens, Tolstói e Balzac. Longas histórias com ricas personagens que podem ser compreendidas sem nenhuma dificuldade. E é esse o modelo que vem sendo repetido, alimentado e exigido, por meio de um perverso sistema de recusas e revisões, de subsídio milionário ao formulaico, pela indústria editorial do século 20 até este ponto crucial em que ora nos encontramos. O modelo do romance realista do século 19 cristalizado nas obras de Dickens alimenta a atual cultura do romance de entretenimento serializado e também, paradoxalmente, a cultura da mesmice da alta literatura anglófila que está no centro do panteão canônico, com raras exceções. Porém antes de chegarmos ao  século 21, é necessário mencionar as vanguardas de início do século 20 e de seu caráter revivificador. Como afirmou César Aira, “as vanguardas apareceram quando se deu por encerrada a profissionalização dos artistas, sendo necessário começar de novo. Quando a arte já estava inventada, restando apenas continuar fazendo obras, o mito da vanguarda veio repor a possibilidade de se fazer o caminho a partir da origem (…) a vanguarda foi a resposta de uma prática social, a arte, para recriar uma dinâmica evolutiva.” Derrotada pela mercancia do sistema editorial que atinge seu auge econômico da metade do século em diante, a vanguarda, também autosabotada por seu próprio caráter monolítico, deixando marcos intransponíveis como o “Ulysses” e “Em Busca do Tempo Perdido”, pedras fundamentais que não fundam nada, pois não fornecem modelos para reproduções e se autodestroem na nascente, não deixou herança. E aqui nos encontramos: no meio do deserto, sem nem uma coca-cola para matar a sede. Então eis que surge uma encruzilhada. A placa indica para um lado FIM DE TUDO e para outro, RENASCIMENTO. Com a substituição do antigo padrão de inteligência simbolizado pelo livro e pela eventual renovação — para não sermos mais drásticos — do sistema editorial proposto pela difusão digital, qual caminho a literatura vai tomar para se manifestar? Há alguma chance de que a ficção literária novamente ressurja, nem ao menos que seja para  se impor “o objetivo de saber como funcionavam as velhas coisas e como funcionava o mundo”, no dizer de Aira, ao considerar que a arte continua a ser o melhor campo para a prática e a experimentação da velha inteligência, como a conhecíamos antes de desconhecermos por completo como funciona o mundo? Em discurso recente aos formandos de uma faculdade de artes da Philadelphia, o escritor britânico Neil Gaiman, procurando soar otimista diante de jovens que começam sua carreira profissional, afirmou que o topo da cadeia alimentar editorial com quem vem conversando “não faz idéia do quadro que existirá daqui a dois anos, quiçá daqui a dez”, recomendando aos artistas que só lhe resta fazer “boa arte”. Apenas esqueceu de dizer o que é a “boa arte”, que certamente não é o que encontramos com facilidade por aí nas prateleiras das poucas livrarias que ainda existem. Segundo Jorge Luís Borges, arte é “a iminência de uma revelação que não se produz”. Quem sabe não possamos em breve reencontrá-la em prateleiras digitais a módicos preços e com mediação menos comprometida? Bem, final do parênteses. Retornando aos aliens, enquanto esta reflexão digressionava, passam-se cerca de cem anos ou o equivalente a cem anos no tempo dos aliens, para que eles descubram a eletricidade. Quando enfim criam a primeira tomada e vão todos felizes plugar o leitor de livros eletrônicos na parede, os aliens descobrem que o plugue não serve. Eles então são obrigados a inventar o benjamin, ou o tê, ou o adaptador elétrico universal. Isso lhes ocupa mais uma semana-alien. Nisso, os aliens começam a ficar meio desanimados para descobrir quais histórias maravilhosas o leitor de livros eletrônicos lhes reserva. Quando estão prestes a conectar o plugue no adaptador, porém, acontece um curto-circuito poderosíssimo que apaga todo o prédio onde eles instalaram o seu centro de pesquisas. Bem, a má notícia é que o curto circuito também queima o leitor de livros eletrônicos e todo o seu conteúdo, livros eletrônicos que os aliens nunca terão chance de ler, mas que, na condição de autor desta história, posso adiantar a vocês quais são, e que se tratavam de alguns clássicos da literatura de auto-ajuda, leituras de cabeceira do cachorrinho morto que vive em cima da cabeça do Eike Batista, coisas que o cachorrinho morto que vive em cima da cabeça do Eike Batista lia para inspirar seu trabalho apocalíptico e de renovação do mundo, tipo “Como Eu Se Fiz Por Mim Mesmo” ou “Como Dominar o Mundo em 24 horas Só Com Seu Cartão de Crédito e Dois Cotonetes”. E isso é tudo que sei sobre os descaminhos, neste caso siderais, da literatura.

[ Texto lido no último Congresso de Jornalismo Cutural da revista Cult, em junho/2012; inspirado num tuíte de Alan Sieber; Santarém, Pará, maio de 2012 ]

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A solidão nas fotos do Instagram

 

01.

Quantos homens e quantas mulheres devem estar conectados através dessa torre de telefonia neste momento? Milhões? O Facebook acabou com as linhas cruzadas. Ninguém mais atende a uma ligação, desliga e diz: “Era engano”. Não é necessário fingir que se discou um número errado para falar com alguém. Não existem mais enganos. Eu estou aqui. Você, aí. Por que não me liga?

02.

A solidão nas grandes cidades é idêntica à do espectador que assiste a uma cena que exibe pessoas entrando em vagões do metrô. Esse balé sincronizado não o inclui. Ele permanece estático, mas vê tudo. A multidão se move sem ver. Não há emissão e recepção, nem cruzamento de olhares. A condição do espectador é semelhante à da moça quatro-olhos no baile de formatura. Ninguém tira ninguém para dançar.

03.

O hábito de fumar, quem diria, aproxima as pessoas. Alguém já disse que percebeu a completa falta de sentido do ato somente ao fumar de luvas. A tatilidade é o próprio cigarro para o fumante, e não senti-lo é o mesmo que não fumar. Isso prova que o cigarro só existe entre os dedos, daí a postura destemida do fumante que se recusa a aceitar a existência da fumaça nos pulmões. Você tem fogo?

04.

Não me deixe aqui, não acredito no abandono. Veja, eu tenho celular. Vou fazer uma pergunta ao Twitter, que tem este nome, mas bem poderia se chamar Esfinge. Decifra-me ou te devoro e te cago cobertinha de ouro. Alguém me ouve? Quem quer ir ao cinema, ao bar, à igreja? Não sei mais o que é real, a não ser o esquecimento. Me deixe. Eu acredito em enganos. O Twitter na verdade se chama Sphincter.

05.

Ninguém mais acredita que o silêncio vale ouro, nem os gângsteres. O negócio — negócio de verdade, com cifrão no lugar do cê — é se comunicar, é dizer, é monetizar a comunicação no plano pessoal, não em massa. Então por que você não me manda um sms, por que me abandona, por que se engana? Por que não me manda um SOS? Por que, porcaria?

06.

Post its. Anotações. Cartões postais. Bilhetes de amor. Cartas anônimas. Listas de supermercado. Trabalhos escolares em cartolinas. Cadernos de caligrafia. Layouts em Letraset. Poemas em guardanapos. Cartazes de aluguel. Paste ups de anúncios. Lembretes em calendários. Corações flechados nos gessos. Pedidos de socorro em notas de dez cruzeiros. Tudo isso não serve mais. O passado não te deixa triste?

07.

Lançar mensagens em garrafas ao mar não é o mesmo que deixar um desesperado pedido por afeto na timeline. A garrafa chega a algum lugar, nem que seja a uma ilha rodeada de clichês de solidão, como aquela história de qual livro se levar para uma ilha deserta. A única idéia de solidão que permanece imune ao lugar comum é a de naufrágio, justamente pelo fato de o naufrágio não ser um lugar, mas um meio.

08.

Até pouco tempo atrás pessoas agradeciam a Deus em notas de dinheiro. Não dá para fazer o mesmo em moedas, a não ser que você seja um ourives. E quanto aos casais que registraram seus nomes em troncos de árvores? Eu também gostaria de agradecer a Deus, mas não sei exatamente o quê. Enviei um email para Ele, mas voltou escrito assim: daemon_mailer_full_box. Deus não está no Facebook.

[ Publicado originalmente na revista Select. As fotos são do meu Instagram. ]

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Memórias do quarto naufragado

O quarto em que me hospedei em Paraty na edição de 2004 não existe mais. Ficava em um anexo da Pousada do Ouro e para entrar nele os hóspedes carregavam uma chave enorme e enferrujada que parecia resgatada de um navio pirata naufragado.

Carregar uma chave tão grande no bolso da frente das calças tinha implicações negativas e positivas. Primeiro, era um pouco incômodo. Segundo, podia atrair olhares e despertar vãs esperanças.

Não sei o que foi feito do quarto, cujo espaço estava à altura do tamanho da chave. Promovi algumas festinhas nele. Espero não ter contribuído para seu fechamento. Para se chegar ao anexo onde o quarto ficava, o hóspede era obrigado a atravessar uma parede, quer dizer, a entrar pelo portão de madeira que ficava (talvez ainda esteja lá) no muro em frente à praça da matriz. Desaparecer no meio da multidão que infesta a praça através do muro dava uma sensação meio fantasmagórica.

Participei como autor convidado em duas mesas da 2ª edição da Flip. A primeira foi inesquecível, ao lado dos amigos Daniel Galera e Marcelino Freire. A edição de 2004 foi a primeira a acontecer na Tenda do Autor como ela é hoje (na de 2003 os debates aconteciam na Casa Azul), e nossa mesa foi a primeira a acontecer nela. Portanto não exagero em dizer que eu, o Galera e o Marcelino inauguramos aquela tenda.

Também participei da última mesa, aquela em que convidados comentam e lêem trechos de seus livros preferidos. A daquele ano foi composta por Milton Hatoum, Margaret Atwood, Paul Auster, Martin Amis, Pierre Michon — e eu. Parece piada, e até deve ser. A platéia era tão estrelada quanto o palco.

Depois da leitura, na qual homenageei José Agrippino de Paula, mantive um diálogo curioso com José Miguel Wisnik em uma pizzaria. Ele disse “José Agrippino de Paula?”, ao que eu falei “É, José Agrippino de Paula…”. Ele então disse “José Agrippino de Paula!” e eu falei “José Agrippino de Paula!” e acabou. Foi uma honra conversar com o Wisnik.

Antes da mesa, porém, eu estava muito nervoso. Quando cheguei ao camarim, fiquei nervosíssimo, pois lá estavam Paul Auster e Martin Amis e ninguém além de nós. Eu havia levado um livro do Auster chamado “The Story of my Typewiter” para ele autografar. Mas quem disse que consegui falar uma palavra que fosse? Ele chegou a retirar delicadamente o livro de minha mão — já que eu não emitia nem sim nem não em resposta ao seu pedido — para mostrá-lo ao Amis. Era um livro de baixa tiragem cheio de ilustrações da máquina de escrever do Auster feitas por Sam Messer, amigo dele. A edição continua aqui em casa, sem o autógrafo.

Fiquei sem o autógrafo pois fui obrigado a sair do camarim às pressas, enquanto Auster mostrava o livro ao Amis. Quando fico muito nervoso como naquela ocasião, costuma me dar uma vontade tremenda e inadiável de ir ao banheiro. Era uma vontade daquelas, compreendem?

De modo que me enfiei naquele horroroso banheiro químico verde dos convidados — não sei se a cor era mesmo esta; talvez eu que estivesse verde — e fiz o que precisava fazer. Aliviou a tensão um bocado. O problema é que a descarga não funcionou. Pressionei e pressionei o botão (ou puxei a cordinha) e nada. Acabei desistindo. Fazer o quê?

Cheio de culpa, porém um pouco mais leve, abri a porta do banheiro químico. E me deparei com a beleza loura e diáfana e perfumada de Siri Hudsvedt, a mulher do Paul Auster. Estava sozinha na fila. Era a próxima. Siri Hudsvedt então sorriu simpaticamente seu sorriso de vikinga para mim, e entrou no banheiro.

Por diversos motivos, a Flip é mesmo inesquecível.

[ Memórias de minha participação na Flip 2004 publicadas no blogue em comemoração aos 10 anos da festa de Paraty ]

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Avenida Paulista, 120 anos

Imagine que o fauno esculpido por Brecheret, adormecido por décadas entre as ramagens do Parque Trianon, desperte nesta noite de aniversário da cidade. Depois de se espreguiçar, ele salta as grades e sai a passeio pela Paulista. O que irá ver?

Nada de arbustos para se resfolegar, isto é certo — a Mata Atlântica que ora existe é apenas aquela recém deixada para trás, mínima e quase nenhuma — diante do Masp, confunde-se mesmo com um museu da natureza.

Mas há agora o que antes não havia, espelhos aonde se refletir. O fauno se verá multiplicado aos milhares nas vitrines esfumaçadas das portas cerradas de bancos e prédios enormes cujos nomes são siglas. Ele haverá de estranhar ver-se somente a si no reflexo dos vidros, pois nunca existe ninguém no avesso interno dos edifícios desta avenida. Nem um só vulto que lhe acene. Ninfas nenhumas.

Fauno prestes a virar minotauro, nosso amigo agora se depara com monstros inéditos na mitologia, mas que abundam no grande mundo humano: seres diminutos de cabeças descomunais caminham em sua direção, as mãos abertas em cujas palmas viradas aos céus também nada se encontra, nem migalha nem níquel. Nem mesmo chuva escorre ali.

Então surgem outras bestas mitológicas: duelando com carros, Fofão sopra suas bochechas cheias de vento e silicone vencido. Com efeitos especiais, sua tristeza convence os passantes, que lhe disparam vinténs com fúria. Agora silvam ao redor do fauno outros faunos com rodas, sobre skates e outros bichos desconhecidos que deslizam. Nosso amigo anima-se a afinar os cascos nas largas esplanadas da avenida. Ele galopa. O dióxido de carbono levanta seus cabelos.

E daí, para os lados da Augusta, ele deixa de lamentar o sumiço dos casarões e de seus jardins cheios de vaga-lumes. Hordas de sátiros e ninfas de mãos dadas vêm em sua direção. Estão felizes. Embora cercados por muros altíssimos iluminados por cifrões, eles gozam de estranha liberdade. Isto parece a Grécia antiga, o fauno pensa. Acaba de ver as luzes da Paulista. Ele nunca mais se resignará ao silêncio do Trianon.

 [ Crônica comemorativa do aniversário da cidade de São Paulo encomendada pela Folha de S.Paulo em 2009 e não publicada. Ficou anacrônica depois dos espancamentos de gays, mas segue aí para celebrar o que interessa ou deveria interessar: a liberdade e os 120 anos da Avenida Paulista comemorados hoje. ]

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“Lean, lean este libro nada conservador, lean Não há nada lá porque pertenece al núcleo central de la más exigente de mis bibliotecas portátiles. Ha pasado todos los exámenes y es idóneo para viajar con él a las provincias cosmopolitas en las que admiten el pasaporte shandy. En esos lugares, llegar con Não há nada lá sólo ofrece ventajas, permite buenos y santos alojamientos y las mejores compañías siempre que sepamos darle el tono adecuado a la contraseña que allí exigen y que revelo aquí sin problemas porque lo que verdaderamente cuesta es dar con el tono: ‘Lo importante no es saber, sino tener el teléfono del que sabe’.

[ Trecho da apresentação que o master of the universe Enrique Vila-Matas escreveu para a reedição de meu romance de estréia, Não há nada lá, a sair no segundo semestre pelo selo Má Companhia, da Companhia das Letras. Abaixo, o vídeo de divulgação feito pela editora ]


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Minha filha se veste e sai


O perfume noturno instala seu corpo

em um segundo aperfeiçoamento do natural.

Pela graça de sua vida

a noite começa e o quarto iluminado

é uma palpitação de jovem felino.

Agora põe o vestido

com uma fé que não posso imaginar

e um sussurro de seda a percorre até os pés.

Então gira

sobre o eixo do espelho, submetida

à contemplação de um presente absoluto.

Uma doce desordem se imobiliza em torno

até que um chacoalhar de pulseiras sendo fechadas

anuncia que todas minhas opções estão resolvidas.

Ela sai do quarto, ingressa

em uma véspera de música incessante

e tudo o que não sou a acompanha.


[ Minha filha Jujubalangandans Iemanjoyce faz 12 anos hoje e traduzi este poema de Joaquín O. Giannuzzi em sua homenagem. Muitíssimas felicidades, Julia! ]

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1) João Castilho é um ótimo fotógrafo mineiro que acaba de publicar seu novo trabalho, “Peso Morto”, livro que traz um conto inédito meu, “Uma pedra vê os homens”;

2) A “Biblioteca Líquida, parte da Mostra de Artes do SESC SP, também trazia outro conto inédito cujo título era “O livro autosuficiente” (não creditado, assim como os 6 contos de outros autores convidados; a idéia do projeto — curadoria de Marcelino Freire — era discutir a questão da autoria);

3) A edição K da revista paranaense Arte e Letra: Estórias (novembro de 2010) publicou um trecho intitulado “Coelhinho com câncer” do romance “Guia de Ruas Sem Saída”, a sair em 2011;

4) Vocês têm acompanhado minha coluna quinzenal no blogue da Companhia das Letras?;

5) A Revista Pesquisa da Fapesp de janeiro de 2011 trará outro conto inédito, intitulado “A maçã” (trata-se de uma ficção científica **romântica**, embora nada tenha a ver com Wando);

6) Outras novidades estão por vir; tratarei de avisar por aqui em sua devida hora.

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